Ora, as cartas só podem ir aonde as levam,
não tem pernas nem asas, e, tanto quanto se sabe,
não foram dotadas de iniciativas própria,
tivessem-na elas e apostamos que se recusariam a levar as notícias terríveis
de que tantas vezes têm de ser portadoras.

(José Saramago – As intermitências da morte)

Intróito

     Tendo ficado entreaberta, evaporou-se dela uma gota de reflexão que, de imediato inspirei. Senti sua força invadindo meu interior, abrindo espaços em minhas veias poéticas, como que a galope, tornando minha verve ainda mais aferida. Mas causou-me espanto o conteúdo de seu sopro. Não obstante, decidi-me por tentar.

Os dias de antes...

     Foi assim que num dia qualquer – pois, de fato, poderia ter sido qualquer outro dia – seu primeiro choro rasgou sua garganta e soou como música aos que lhe acolhiam. Aquele aparente desespero – como se dá com todos – nunca deixa de ser um eterno prelúdio, mesmo que ninguém se dê conta, de que a vida não será fácil. Há um provérbio que afirma que só quando morremos é que sabemos porque choramos quando nascemos – está no conto Plenitude, de Júlio de Queiroz. E, então, eis o cenário do primeiro ato: um chorando e muitos, à volta, sorrindo. Fato é que a vida segue, as coisas acontecem, o relógio vai contando as horas, o sol contando os dias, a lua contando os anos e é chegado um outro dia, não tão qualquer quanto aquele primeiro e bem menos desejado que ele. Dia de outras lágrimas, de outros choros, outros desesperos e novas dores. Do choro da vida às lágrimas da morte. E se descobre, a duras penas, que a perda do amor levado pela morte é a perda das perdas, desenha Lya Luft.

O dia de agora...

     Fosse apenas isso – dizer “apenas isso” é insensibilidade de minha parte, mas diante do experimentado, torna-se quase consolador – esta, aquela, essa outra morte, não seriam tão difíceis. O pior não está sendo a perda. Perder sempre foi um fato e um dilema humano, com o qual se aprende a conviver – necessariamente – muito embora, não fomos criados para isso, por mais que o Evangelho insista nessa necessidade – quem não perder... não vai ganhar. A dor maior está sendo não poder se despedir, não fazer os funerais, não poder sepultar com a devida honra, a devida dignidade, o merecido respeito. Já está dito que não é fácil viver depois de se nascer. Mas ser-te-á mais difícil viver depois de ter voltado – outra vez Júlio de Queiroz que, em Fulgor na Noite, faz duas providenciais referências a Shakespeare: Preparação é tudo, e, Essa preparação é para o que ele vai sofrer, não para o que vai realizar. Não sendo possível um último adeus agora, seja então tempo de preparação para quando a vida voltar ao seu curso. Qual vida? A tua. Permita-me, pois, com a profundidade de Queiroz, ajudar-te a prepara-la:

Deve ser assim com todos que perdem a quem amam muito: primeiro, a dor incontida. Depois, a negação de tudo, o desligar da chave geral da consciência para não haver nenhuma queima do sistema inteiro. Só mais tarde, lentamente, é que o absurdo começa a ser enquadrado no cotidiano e a vida recomeça a ser vivida.
Fica o vazio. Ficam o vazio e a cicatriz. Às vezes, resta uma ferida incurável a embaçar as alegrias novas.

     Que de teus olhos vertam lágrimas – é possível. E nem desejo que seja diferente, afinal, a morte – a indesejada das gentes, no dizer de Manoel Bandeira – é um dia para ser vivido, chorado, sentido, dorido. Mas como é difícil este dia. Deve ser a este que se refere o poeta ao dizer que viver é bom, mas nem todos os dias. Quanto a mim, não escrevo para aumentar-lhe o pranto, intensificar teu sofrimento. Antes, desejo ser-lhe solidário, compartilhar tua dor do modo como me é possível. Acredito que não tenho o direito de confessar Deus se eu não levar a sério a dor dos meus próximos, tal como me ensinou Tomás Halík. Todas as feridas dolorosas, todo o sofrimento do mundo e da humanidade são “as feridas de Cristo” – prossegue em sua aula – ainda que muitos eventos, experiências, ideias e descobertas precisam de tempo para amadurecer em nós e produzir seu fruto – na mosca, como diriam os simples.

     Tem razão José de Alencar: quando se folheia este livro da vida, e que se chega à última página – à morte – quando a alma, em face do nada sente-se tomada desta grande e assombrosa ameaça do completo aniquilamento, é que se sente quanto há de consolador na religião. Sim, a religião sempre nos conforta, ameniza nossa dor, acolhe nosso pesar, reergue-nos para a vida. E é assim que para este, esta que partiu a Quaresma foi mais breve e a Páscoa se antecipou. Queres consolo maior do que este? Só celebra verdadeiramente a Páscoa aquele que tem uma experiência de Deus para recordar. No entardecer da vida daqueles que se foram, em ti fica recordações, um memorial, uma Páscoa esperando para ser celebrada. Antecipe-a também.

Os dias seguintes... que começam agora

     O que há ainda para se dizer...? Bem, fazendo aqui um pouco de literatura, posso dizer [ainda] que a morte é que escreve sobre nós – desde que nascemos ela vai elaborando conosco o nosso roteiro. Ela é a grande personagem, o olho que nos contempla sem dormir, a voz que nos convoca e não queremos ouvir, mas pode nos revelar muitos segredos. O maior deles há de ser este: a morte torna a vida tão importante! Porque vamos morrer, precisamos dizer hoje que amamos, fazer hoje o que desejamos tanto, abraçar hoje o filho ou o amigo. Temos de ser decentes hoje, generosos hoje... devíamos tentar ser felizes hoje (Lya Luft).
     
     E quanto aos que nos precedem no céu, dai-lhes, Senhor, o descanso eterno, e brilhe para eles a vossa luz.