A CASA DA CIDADE. - Lia de Sá Leitao - 03/05/2020
A CASA DA CIDADE.
Lia Lúcia de Sá Leitão.
Ps.Texto do livro que em breve será mais uma edição do Recanto das Letras.
O sobrado da praça central em frente a Igreja Matriz era considerado o cartão postal e histórico da cidadezinha de interior movida nos idos dos séculos passados pelas mãos dos escravos e da cana de açúcar. O avô do avô era gente grande da política local.
Dizia as tias netas que já somavam mais de três séculos e meio de existência sob a Terra que o vô era amigo de um dos Pedros, pelo tempo o avô do avô do pai de meu pai que hoje tem oitenta e três anos. Fazendo as contas é mais tempo que o desbravamento dos brasis.
Um jardim rodeava a casa com dálias, rosas, crisântemos e orquídeas, margaridas e samambaias todas as flores e plantas era conhecidas pelas mãos do jardineiro e enfeitavam com todas as belezas os leirões que perfumavam a casa da cidade no meio de uma quadra inteirinha para ela, se olhava a casa pelos vãos da grade, e era linda!
Tinha uma escadaria e corrimão de mármore com dois leões plantados olhando a rua e os transeuntes que se encantavam com aquela arquitetura e se plantavam à frente do protão principal.
Essa escada com uns doze passos em degraus que se abriam em leque para um avarandado enorme que tomava toda a parte inferior do andar de baixo, cadeiras de descanso, espreguiçadeiras, jogos de cadeiras de varanda. Era a única casa que se preocupava com as crianças e naquela época possuía uma ala só para as horas de leituras infantis e brincadeiras, sob o olhar do contador de histórias e das babás.
O outro ambiente da varanda tinha mesinhas de jogos era mais moderno adaptado para as netas e netos mais velhos e adolescentes.
As redes confeccionadas pelas mulheres da fazenda davam uma cor especial quando estavam atadas dos pilares para a parede.
A varanda era construída sob a proteção de grandes arcos matizados com flores de Liz e o parapeito seguia o mesmo mármore da escadaria um trabalho de decoração de finíssimo gosto italiano ou francês, nunca soube, devia ser brasileiro mesmo, o povo da família sempre foi dado a levantar uma bandeira de oposição ao estabelecido..
Abria-se uma porta central e havia uma antessala, não era pequena, mas ali ficava um cabide para bengalas, chapéus, casacos, naquela época de lá vem trem de fumaça.
Os primos nem olhavam, mas a criança que fui, desesperada em descobrir os detalhes que não me diziam respeito aqueles emaranhados de folhas, tapetes, quadros de familiares que brincaram com Adao e as meninas que fizeram panelinhas de cozinha com Eva, todos metidos em roupas de babadinhos e rendas. Tudo encantava os olhos da minha infância.
O gosto da decoração familiar resumia-se em pendurar as sombrinhas das tias avós, e o chapéu preto do Padre e a bengala do Bispo
Essa salinha tinha espelhos de cristal pra todo lado cada um enorme e todo bordado em de flor de Liz e rococós na moldura de madeira dourada.
Ali não tinha feio que não ficasse bonito e não tinha bonito que não ficasse maravilhoso, era um encantamento entre a claridade do Sol transformadas em luzes colorias dos vitrais, eu nunca entendia nada, mas meu pai se ria a valer e dizia olha esses vitrais narram a História da família. Eu só achava bonito! E ele dava boas gargalhadas.
Aquele lugar era mágico, vez por outra era todo mistério! Arrepiava os pelinhos do braço e das pernas a pele ficava encrespada com um calafrio, e as tripas socavam o estomago com força! Mas, depois da batida do relógio de canto que e o fantasma do mordomo do meu tri avo olhava todo o ambiente e voltava ao cochilo habitual das horas, logo parecia fantasia de conto de assombração da Bá. A ama amada. Em segredo! Até mais presente que a mamãe sempre preocupada em ser uma das princesas do castelo.
A Bá fazia da minha tia avó a Sinhá para quem todos deviam respeito e dava corda para meu mal comportamento.
Até me divertia, gostava de princesas, mas gostava muito mais das bruxas. Os meus olhos conseguiam ver a tortura de manter todo o tempo o bom compormento, e a opressão dos castigos que tia Deda deitava sobre minha cabeça.
Abriam-se outras três portas para uma sala enorme, a sala de visitas.
Os entremeios das paredes para os portais de cada entrada para o salão de festas possuía duas guardiãs romanas em bronze polido paralelas segurando cada uma um candelabro enorme. Igualzinha as mulheres fortes da casa de meu avô que seguravam há séculos todo peso dos tempos!
Os vitrais dessas portas eram compostos de motivos políticos e revolucionários em que o bisavô, o Conde participou na época da praeira pernambucana.
Imagine-se leitor adentrando nesse salão enorme.
Um piano de cauda a um canto e várias cadeiras de estofado ao redor ali ficava a avó Maiá e as tias velhas fofoqueiras.
Várias marquesas com mesinhas e abajurs de louça com motivos reais enfeitavam os espaços vazios.
Tudo que iluminava permanecia intacto o saudosismo dos velhos senhores dava um toque original para o lampião a gás, óleo de baleia e velas.
Tapetes azuis, tapetes de tudo que era jeito cobriam um piso liso, brilhoso de ripas enormes de madeira e ao centro formavam o brasão da família herança hispano portuguesa do primeiro Conde da Divina Graça.
Rodeando daquele brasão as cadeiras de braços com encostos altos, almofadas de vidrilhos do tempo da primeira canja de galinha cozida por Eva.
A biblioteca do vô Conde da Divina Graça era ao lado desse enorme salão de recepção, a porta só era aberta quando papai chegava da capital, ninguém adentrava que não fosse para a limpeza diária.
Pegar um daqueles livros era o mesmo que se condenar a escolha de perder a mão ou passar uma temporada sem férias na casa da cidade. A biblioteca era linda! Prateleiras, estantes com portas corrediças e vitrine de cristal tomavam paredes inteiras, mesas com os tampos de vidro guardavam da poeira o brasão da família em prata e ouro, e umas tintas vermelhas e azuis já rotas pelo tempo.
Espadas, espadachins, punhais de pratas com pedras incrustadas acima do cabo. Arcabuzes da época em que D. João VI brincava de cavalinho, e uma canhoneira apontava para a porta sempre pronta a enfrentar algum inimigo.
Outras mesas guardavam as bestas medievais e arcos indígenas que enfeitavam aquele pequeno museu particular. Obras raras, retratos do tempo do primeiro avô até o último, faltou meu pai que se absteve da ostentação. Ali pendurados num arame preso a um prego estavam todos Condes, tantos que nunca dava para saber quem era quem, os retratos só mudavam as sobrancelhas! As avós com cara de severinas, tinha umas com buço quase do tamanho do bigode do marido ao lado!
Tinha um dos retratos que acompanhava com os olhos qualquer lugar que se andasse na biblioteca. Bá era boa em assustar a meninada, pegava um por um pela mão e mostrava o motivo real daquela sala ser proibida de sangue a fogo para as crianças; ali morava o fantasma daquela velha de bigodes! A tal que olhava tudo! Era a vó Dulcinéia, depois falo melhor dessa criatura.
Quando tinha alguma festa de cerimônia na casa da cidade sentavam-se hierarquicamente ali, meu pai, o Bispo, o Juiz, o Padre os tios pelas idades, depois o médico, o dentista, algum político, o delegado e o gerente do banco.
Ficava em outro plano da sala os mais jovens e solteiros, ali cortejavam alguma parenta mais jovem, alguma que já tinha dado o tiro da macaca e estava doida pra desencalhar num casamento. A mal falada que queriam por tudo tampar o buraco da moral!
A família ainda tem tradição de tias no caritó e as mais sabidas atiravam pra tudo quanto era lado. A modernidade bateu à porta da casa da cidade pela prática das tias solteiras que emprenhavam dos amantes. Pobres crianças mal nasciam já estavam enfurnadas num colégio interno de padres ou freiras.
O outro plano era do lado oposto ao piano, cadeirinhas namoradeiras formavam a letra S, divertidíssimas, uma voltada para um lado e a outra para o outro lado com um braço de madeira separando pelo meio. Aproximava o casal, mas ao mesmo tempo mantinham a distancia com a sutileza da moral cristã.
Um sofá lindo que cheirava a xixi secular, todos os netos da família tiraram fotos ali, os meninos mostravam o bilau, o macho dos culhões roxos do vovô, as meninas sufocadas em panos de linho, mais pareciam um floco de algodão.
O sofá era revestido de cetim pintado à mão um floral emoldurando uma cena Greco romana. Era fácil imaginar Baco saltando de dentro daqueles motivos e aprontando a maior bacanal naquela sala.
Seria o esculacho no pagode! Depois de algum tempo as donzelas candidatas a casamento e as marocas rezadeiras da Matriz sumiam dali e corriam para outra salinha ao lado com os rapazes disponíveis. Faziam bobices às escondidas auxiliadas pelo bruxulear das tochas no jardim.
As cadeiras de balanço, as cadeiras das meninas moças, uma ao lado da outra, e sofás do tipo frances com os pés que mais pareciam sapatos de saltos altos talhados na madeira do jacarandá.
A sala seguinte era a das refeições.
Enorme no comprimento e largura. Uma mesa para 30 talheres, as janelas mantinham linhas divisórias com cristaleiras que exibiam peças belíssimas de séculos passados.
A tradição das refeições familiares se resumia aos domingos e às festas em que autoridades estavam presentes.
Também era concedido um almoço aos netos que tivessem bom comportamento durante o mês, esse “maldito” sentavam à mesa com os adultos, as meninas recitavam poemas, os meninos usavam gravatinhas uns tocavam mal e porcamente violinos executavam pequenas peças com cara de querubins e escondiam a praga que era na realidade.
Aquilo era um desastre para o meu ego! Lutava com todas as forças durante o mês para ter meu lugar ao sol, um dia de celebridade infantil, ler meus textos, cantar as minhas letras e musicais. Eu queria algo mais, os textos eram meus, mas eu mostraria as telas, as pinturas que registravam a fazenda de vovô, o rosto das tias, a capela, um cabrito! Mas não tinha jeito! Era excluída! A desclassificação chegava na última hora. Quantas vezes sai amargando uma raiva silenciosa e ficava sentadinha junto a mesa tosca da cozinha, apenas acarinhada pelos mimos da velha Bá que odiava aquele rigor das tias. Principalmente comigo uma criança diferente das demais crianças.
Convido-os para conhecer a cozinha.
Bá é parte da cozinha e da casa da cidade, personagem das várias infâncias e juventudes naquela cidade. Não é possível desmembra-la para outro momento como as mulheres da casa. Bá tem vida própria, vontades e verdades que virão. Bá é diferente das outras pessoas, tudo nela é cheiro de cozinha é devaneio dos doces, salgadinhos, petiscos e feijão e arroz no molho da galinha ao molho pardo, vinagrete e cebola, tomate e alho e coentro regado fartamente com azeite de Portugal e Espanha. Vamos agora adentrar na cozinha.
Há na parede lateral de uma imensa sala quadrada por igual os dois fogões a lenha. Foram propositadamente construídos paralelos à porta que dava para o quintal. Acima dos fogões se abriam janelas enormes que iluminava todo o ambiente..
A Bá reinava naquele canto da santa gula! Não permitia ninguém apagar fogo que ardia noite e dia. Berrava a plenos pulmões com os primos mais velhos: Sai já daí moleque ou falo para o Sinhô Doutor desses cigarros do capeta! Esse “foigo” é promessa de Santo! Nunca apagou “desNa” a preta avó.
O cheiro de brasa e gordura dava um toque de casa. Era o sabor da Bá descendente afro brasileira de escrava bantu. Era farta de seios, barriga, bunda e gritos.
O enfeite da Bá era a toalha nos ombros para enxugar o suor do rosto e do “toitiço”. O pescoço da Bá emendavam cabeça, ombros e papadas, os olhos pareciam azeitonas pretas espremidas entre a cavidade ocular e as bochechas. Tinha naquela época 70 anos e não precisava de óculos. Enxergava tudo! Nada passava sem um olhar de soslaio e quando Bá erguia uma das sobrancelhas e colocava as mãos na cintura era hora das verdades. Bá foi a segunda mãe de toda a família. As suas mãos eram pesadas nas horas das palmadas, porém macias no afago carinhoso e seu sorriso largo com dentes perfeitos e bancos era o consentimento para os beliscos nos biscoitos guardados num latão dentro do armário de pau ferro bem tosco. Havia armários enormes nas paredes opostas aos fogões, ali era armazenados doces secos, doces em caldas, cereais, pratos da diária, faqueiro da diária e copos. A mesa de pau ferro era enorme cabiam ali todos os netos de péssimo comportamento do Conde da Divina Graça, naquele idos de 1964 aquela mesa enorme me cabia inteira! Mais ao fundo próximo ao paneleiro que guardava todos os apetrechos de cozinhar areados e limpos. Logo ao lado ficava a outra mesa, menor e menos alta, a mesa das crianças bem comportadas pouco se via farelos de bolo, pão, biscoitos, ou bolachas, elas comiam nos pratinho e tigelinha, bem diferentes de mim que enchia as mãos e a boca..
Bá batia a vassoura nos mais velhos quando atentavam contra os mais novos. Servia para assustar os desavisados. Ela ria a valer dos sustos que pregava nos adolescentes chatos! Bá tinha um olhar dócil era um anjo.
Ouvi muitas vezes ela conversando com as outras serviçais da casa comentando: Deus que me livre! Tantos meninos ricos e tristes.
O povo não entende que esses endiabrados são mais alegres que os certinhos e desconfiados.
Oi Maria, Deus o livre, mas, esse sinhozim ta ficando com toda ferramenta dos efeminados! E saia balançando a cabeça e se benzendo. Bá tinha razão! Aquele primo tornou-se intolerável nos enjoamentos de gay histérico e cheio de estrimiliques., ele exigia aquela comida sem graça e cheia de melindres e na sala de alimentação dos tios e tias entojava e tinha que a cozinha providenciar algo especial.
Eu adorava mesmo era aquela cozinha, tudo espaçoso! A bancada do filtro de barro e a bancada do filtro de louça todo decorado numa pintura clássica com motivos românticos.
Amava quando a Bá me sustentava no colo ou acertava o bolinho de feijão na boca aberta sentada no chão. Adorava ver a Bá no banquinho da mesa com um monte de bolinhos de feijão com farinha mergulhado no molho da galinha cozida, a graxinha ( óleo queimado da raspa do fundo da panela) e numa pontaria de franco atiradora dizia: abre o “bocão”.... abria num A, e ela atirava certinho o trabalho era mastigar.
Os bolos, alfinins, cocadas, doces de batata doce e de goiaba, jaca, passas de caju, doce de jaca dura em caldas, doce de banana e o cheiro do licor de jenipapo, cravo canela e anis estrelado. A cozinha da Bá servia aos comuns e aos nobres com os fios de ovos, quindins, pudins, bombons, bolos, gelatinas e uns doces sem graça pareciam plastificados, doces finíssimos que obrigavam o povo a comer em taças especiais e com colheres de prata.
A Bá fazia os mais gostosos quitutes da antiga culinária africana, posso lembrar os mimos que ela cozinhava escondido para mim, bolo de mandioca, bola ( um bolinho de mandioca e coco ralado), tapioca, bolo de tapioca, bolo cremoso de milho, galinha cabidela, tripa de porco assada, cozido de costela, muito peixe de coco, pirão, feijão de corda, codorna assada, feijoada, maxixada, quiabada, ela ria e dizia você menina tem o pé na minha senzala.
E por falar em senzala, chegamos à porta que dava para o quintal e a rua.
Ali estava a casa de banhos, ou seja o banheiro. Enorme! Era original o piso de cerâmica da terra polidíssimo. As duas banheiras enormes com espelhos nas cabeceiras, a gente se banhava ali e via todo o movimento ao redor, nunca entendi o motivo daquele espelho ali, estratégicamente plantado; uns diziam que era medo das avós de serem mortas pelos criados, outros diziam que era chique, mas eu sempre achei acintoso, era pra ver as safadezas, ops! Os devaneios do corpo e dar mais excitação! E os pinicos de vários tamanhos esses merecem detalhamento.
Os penicos da casa eram simples, decorados apenas com flores em relevo sem pinturas externas. O pinico da Tia Deda não tinha motivos externos, mas era pintado por dentro com rosas azuis e fios de ouro. Todos eram lavados com creolina e emborcados num degrau a certa distância dos outros três vasos de cadeira.
O mais engraçado era a construção em alvenaria com saletas paralelas de meia parede e cada uma com seu vaso sanitário, cadeiras que serviam de bacias.
Quem sentava na primeira levantando a cabeça podia ver quem estava na segunda e obviamente na terceira casinha. Outra curiosidade era um vaso sanitário feminino com motivos românticos, um casal numa árvore ela sentada num balanço e ele em pé olhando as nuvens! O masculino os motivos também românticos, porém uma cena de caça e o outro infantil, uma árvore com um balanço, crianças e bichinhos de estimação.
O pinico possuía toda uma infraestrutura de conforto. Era uma cadeira de fundo aberto tipo bacia de vaso sanitário toda de madeira em cima de uma caixa de madeira quadrada, ali a pessoa ficava sentada e ali evacuava as necessidades fisiológicas. Deixava os excrementos sólidos e líquidos em um pinico que estava encaixado logo abaixo.
Havia uma portinha de madeira com uma maçaneta de louça com os mesmos motivos do pinico em miniatura, quando se puxava para abrir aquela tampa, automaticamente aparecia um pinico de louça todo bordado com os tais motivos e a obra recheando o vazio.
Essa casa de banho servia de mostra histórica.
A outra casa de banho era um banheiro moderníssimo cheio de novidades.
Mais para o lado do muro que dividia o quintal da rua ficavam umas seis casas conjugadas, a antiga senzala. Foram feitas algumas reformas internas para maior conforto das pessoas, mas nunca foi modificada os frontões, ou qualquer estrutura externa das primeiras construções,. Papai deu a Bá acasa maior, e era a li com muito conforto. Mas, a Bá possuía duas casas grandes para caber os nove filhos e eu.