O Teatro Transcendental Cearense
O melhor lugar para se nascer cearense, sem dúvida nenhuma, é no Ceará! Eu quero é cegar do olho, se existir melhor! Para morrer, porém, só Deus sabe, e não divulga, sabe Ele por quê!
E assim, foi no Ceará que decidiram, num feérico dia, iniciar uma grande mostra de Teatro Transcendental. As regras eram claras: para participar da mostra, os integrantes das peças deveriam estar mortos, completamente mortos! Digo isso, pois alguns atores e diretores por se acharem esquecidos e malogrados em suas tentativas de continuar a luta pelo teatro aqui no Ceará, já se consideravam mortos o suficiente, não imaginando eles que, durante a inscrição, de acordo com a burocracia espiritual, era exigida a comprovação de seu estado de morte morrida, inclusive o atestado de óbito e comprovante de residência em terreno santo. Não adiantava o candidato simplesmente aparecer com os cambitos envolvidos por correntes adquiridas no Mercado Central! O recepcionista alentava: “Tenha paciência, irmão, mais cedo ou mais tarde você chega lá. Por enquanto, merda pra você!”
A notícia rapidamente espalhou-se no corredor (no caso de Fortaleza, quase que literalmente) artístico da cidade. A mostra, como não poderia deixar de ser, aconteceria no Theatro Taliense, situado à rua Formosa (atual Barão do Rio Branco), também famoso pelo habitual baile de máscaras junino.
Curioso, fui adquirir um ingresso. No sereno do Theatro, entre as portas da entrada, vi passar o José de Alencar, também um dos maiores dramaturgos brasileiros, que havia inscrito na mostra O Demônio Familiar e As Asas de Um Anjo. Abanando a cabeça, e olhando ressentido para o ator João Caetano que acabava de chegar, berrava: “Muita casa, muita gente, muita lama!”(*)
No salão vi, num canto, Mademoiselle Adelina Baptista, ao piano, e no violino, o Henrique Jorge. Na correria, podíamos ver por frestas de tapumes, atrizes apertadas em espartilhos, envolvendo-se em lenços de seda de cor e em belíssimas toilettes.
Os artistas da mostra saíam dos camarins para se encontrar com os colegas e filodrâmicos que por aqui ficaram, além do público que ainda se apertava na bilheteria. Pude reconhecer: Guimarães Júnior, Francisco Augusto Borges (da Sociedade Particular Dramática Dous de Fevereiro), X. de Castro, Marcus Miranda, Osmundo Pontes, Rodrigues Sampaio, Nadir Papi Sabóia, Zenon Barreto, B. de Paiva, Aluísio Medeiros, Othon Damasceno, Waldemar Garcia, Walden Luís, Ricardo Guilherme, Haroldo e Hiramisa Serra, Antonieta Noronha, Eduardo Campos, Carri Costa, Marta Aurélia, Majô de Castro, Ângela Escudeiro, Ceronha Pontes, Jorge Rithie, Nirton Venâncio, Dimitri Túlio, Ary Sherlock, Clébio Ribeiro, Rafael Martins, Lucas Sancho, Oswald Barroso, João Netto e muitos outros artistas e seus grupos como a Comédia Cearense, Balaio, Bagaceira, Cabaueba, Pesquisa, Formosura, Cia de Teatro Lua, Cia Cearense de Molecagem, Taipa, AGUA, Boca Rica, etc.
Uma trupe ectoplásmica, que ensaiava uma comédia de costumes, pôs-se a representar, ainda do palco de cortinas cerradas, emoldurada por um arco azul-celeste: “Ora, ora, se quem avisto não é o Raymundo Netto, o moço que escreve no jornal!”, disse um mais gordanchudo, colocando a mão em pala risonha sobre os olhos. “Mas ele não é aquele que só escreve em mesas brancas?, zombou outro, fazendo uns mungangos. “Ah, meu filho, mas quem disse que ele escreve? Psicografa”! “É verdade que já estão pensando em exorcismar você, seu menino”? “Vivas ao grande teatro amador!!!”
Em meio aos aplausos, apupos e assobios estridentes, os atores se curvavam e desfilavam trejeitos por sobre o proscênio, envaidecidos e vivos... se isso fosse possível, é claro.
Após uma Pausa Dramática, concluí, com poucas conversas, que fazer teatro no Ceará é mesmo muito difícil. Muita complicação para tão pouco ou nenhum reconhecimento. E olhe que aqui se têm muito bons artistas... Sim, o artista é acima de tudo um conspirador! Falando sério: o povo só acredita que é ator de verdade, quem aparece na televisão. E isso, mesmo após as grandes emissoras terem conseguido provar que não precisa ser ator para se fazer novela, não precisa ser cantor para cantar e nem precisa ser bonito para ganhar dinheiro enfeitando tela de Photoshop. Mas nós sabemos que, para fazer a diferença, para gerar emoção, sensibilizar, para se eternizar, aí sim, precisa ser artista... e muito!
Nisso, um senhor muito sério, surgiu por trás das cortinas, e, com um bastão de madeira, bateu três vezes no piso e anunciou que o espetáculo iria começar. E ia mesmo, não fosse por um rapaz que entrou esbaforido a gritar:
— Acode, minha gente, que o Carlos Câmara foi preso na praça do Ferreira porque estava tomando banho pelado no cacimbão!
Pois é, amigos, e viva a comédia cearense!
(*) trecho de O Demônio Familiar
Raymundo Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, membro do Conselho Editorial de CAOS Portátil – um almanaque de contos. Contato: raimundo.netto@globo.com