A Casa... Vazia
Pois bem, estava cruzando o Benfica, bairro intelectual e boêmio de nossa Fortaleza, para visitar um amigo que mora próximo à universidade, quando vi um fusquinha verde entrar no estacionamento aberto do shopping. Como se fossem fogos, despertando a dormência da tarde, explodia-lhe o escapamento, deixando-se traçar no chão uma trilha de doze parafusos. Os taxistas e pedestres riam daquela “arrumação”.
Desceu do carro um senhor magro — aparentava uns oitenta anos — com o rosto marcado e pálido, testa larga e os fios de cabelos brancos puxados para trás das orelhas. Com as mãos à cintura, e numa delas uma rosa, olhava surpreso para os lados. Leon, um funcionário que trabalha no local há mais tempo, gentilmente tentava explicar-lhe algo. Aproximei e ouvi quando aquele senhor insistiu, impaciente: “Mas, meu filho, você é quem não está me entendendo... Eu moro aqui!”
Não tinha mais dúvida: aquele homem era mesmo o professor Moreira Campos!
Leon não sabia o que fazer. Decerto, deveria ser um engano. Fazia já algum tempo que ali funcionava o estacionamento, e antes, ouviu dizer, “havia apenas uma casa antiga onde moravam dois velhos, mas que o shopping havia comprado e demolido a tal casa”.
Percebi que o Moreira, então boquiaberto, deixara cair a rosa que aos poucos empalidecia como se a dizer “para tão longo amor, tão curta a vida''*. Ficou assim, estático, dirigindo um olhar atento e desesperançado para o pequeno rapaz que falava, falava e falava...
— Vamos tentar resumir essa história, faz-se longa demais!, concluiu, deixando o moço a falar com as moscas.
Um cachorro magro farejava latas de lixo, parou e pôs-se a latir, arranhando a porta do carro com a patinha: Dizem que os cães vêem coisas...
Contrariado e perdido, o professor sentou-se no meio-fio do passeio ensombrado por um benjamim; apoiou o queixo pessimista no dorso de uma das mãos e divisou aquele shopping, mergulhando em si mesmo, encolhido pela tristeza. “As moscas insistentes provavam-lhe os cantos dos olhos” e ele refletia: “A vida endurece”!
Não via mais a sua casa, mas por dentro, chorava-a. Ouvia as mesmas vozes, o ranger do armador, o tilintar dos talheres na cozinha, a zoada das crianças no corredor e o piano da companheira amada: a Zezé... Passou pela cabeça, penso, as alegres reuniões e o papo literário, o café, o convívio com amigos no pequeno jardim de sua casa, a delícia da beira da rede na varanda, o desgasto do piso comido por tantos passos, o gemer de ferros do relógio na parede, o cheiro da terra molhada pela chuva colorida em iluminuras pelas histórias da Natércia, o cheiro do inhame quente, do piqui, da manteiga da terra, os passeios na calçada depois do jantar, e daí, sentiu saudades da penumbra da noite, onde queimava o lume de um cigarro... Desabafou:
— Não tem coisa pior do que voltar para casa e encontrar as portas fechadas... O mestre Tchecov já dizia: “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira”.
As pálpebras franjavam o olhar plangente. Ele resistia, mas não estava sendo fácil:
— Não podia ficar para semente, ora! — caiu num silêncio melancólico, uma sensação perturbadora de não reconhecimento. Sim, aquela casa o abrigara e o acolhera por tantos anos. De lá, do “buraco da gia”, gabinete construído nos fundos da casa, é que vaporaram muitos dos seus fantasmas! Agora, eram apenas lembranças que se perderam no pó das paredes que ruíram.
— E os meus amigos, o Manuelito Eduardo, Artur, Aderaldo, Colares, Caetano, Sânzio, Pedro, Inês, Ângela e os outros, se quiserem me ver? A casa era tão minha que se pejava de minha voz. Eu podia falar pelas colunas, paredes, telhados, janelas... E agora, quando quiserem me encontrar, como farão?
Abeirei-me do contista, mostrei-lhe um livro de sua autoria que, por felicidade, trazia. Pedi uma dedicatória. Moreira sorriu, compreendeu meu recado, e tomou-lhe às mãos.
Leu para mim um trecho de As Três Irmãs: “(...) tinham mandado demolir o casarão: queriam espaço para o estacionamento de automóveis, mais lucrativo (...) O senhor de cabelos brancos comentava:
— Uma pena!
— Isto era casa para ser tombada. Um patrimônio.
— Não temos tradição.
— Pura verdade.”
Fez-se novo silêncio. Recordou sua vinda para a cidade amada, pigarreando um pouco para depois declamar: “Fortaleza era então provinciana, era menina. Cadeiras nas calçadas e a tristeza dos lampiões a gás em cada esquina”.
— Pois é, professor Zé Maria, mas essas coisas não acontecem só no Ceará, não, viu? No Rio de Janeiro também deixaram demolir a casa do Machado de Assis.
— Sim, eu sei, estive com ele... Estava casmurro por conta disso: a casa foi-se indefesa! Nem os lidos... Contudo, sempre acreditei que “o destino é o mais fértil dos ficcionistas, aquele capaz de todas as tramas e enredos”. Quis o destino que esta casa não sobrevivesse. O consolo é que “valem todos os momentos que deixamos impregnados naquele chão de mosaicos tão antigo.”
Puxando um cadarço do mocassim e espantando uma mosca que lhe mordiscava o lábio, Moreira olhou a rua, apontava as pessoas que passavam: uma mulher que, arrastando cinco crianças descalças e alegres, trazia um prato enrolado com uma toalha; o senhor de olhos grandes e brancos, onde as contas de um terço corriam-lhe pelos dedos; duas velhas moucas; uma moça de blusa de mangas compridas de bolinhas com o esmalte das unhas roído, e outra que passava agitada com o dedo em riste, bradando: “Meu irmão foi um mártir!”
— Está dando uma de doida, criatura? — perguntou, a sorrir do gracejo, para ela. Confessou-me: — Toda a literatura que escrevi se inspirou neste território cearense e em sua gente. Sou seduzido pelo ser humano e pelo que ele tem de vulnerável! Aprenda, Raymundo: sem experiência vivida, é raro conseguir-se grande coisa em ficção. Falo da verdade artística. Para ser arte, tem de se recriar o real, caso contrário se torna matéria jornalística!
Levantou-se, bateu o fundo da calça, tossiu um bocadinho, olhou novamente para o vazio. Dirigiu-se, agora mais tranqüilo, ao Leon. Lembrou e falou de Leonete, sua prima-irmã, enquanto o rapaz recebia as chaves e registrava a placa de seu fusca: “XQ - 2992”. Moreira deu uma tapinha no capô duro e recomendou que “tivesse pena do bichinho...” Depois, colocando o braço sobre meu ombro, perguntou se naquele negócio (referia-se ao shopping) tinha, pelo menos, um cinema. Adorava cinema! No outro dia, disse, iria ao Bosque das Letras, tinha tantas saudades das árvores de lá... “Pelo menos elas continuam por lá, não? Olha, olha...”
Chegara a noite, as corujas apareceram rasgando mortalha “num cair de asas leves, impressentidas, como num sopro de morte” no alto do vazio que restou.
(*) Último verso do Soneto 88 de Camões
Moreira Campos (1914- 1994) nasceu em Senador Pompeu, Ceará. Contista, fez parte do grupo Clã e é autor de Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), Dizem Que Os Cães Vêem Coisas (1987) e outros. Foi autor da Coluna semanal Porta de Academia (1987 a 1994) do jornal O POVO. Algumas falas e trechos do texto são adaptações e transcrições da produção de Moreira Campos.
Raymundo Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada (premiado pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará), membro do Conselho Editorial de CAOS Portátil – um almanaque de contos. Contato: raimundo.netto@globo.com