A Fofocaria
Conversando com um amigo, lá de Limoeiro, sobre o interesse na abertura de um novo segmento de negócios na cidade, sugeriu-me um que acreditava ser bastante promissor e original: uma fofocaria!
Nunca havia pensado nisso... Abrir uma fofocaria no centro de Fortaleza, talvez fosse mesmo um bom investimento. Digo no centro, mas bem sei que há espaço para rápida expansão de franquias em shoppings, igrejas, clubes, lans e nas academias... de ginástica, obviamente.
Receoso, decidi consultar o Raimundo de Menezes, também cronista, profundo conhecedor da gente e dos costumes da cidade, para saber o que ele achava do empreendimento. Ele, arranhando o rosto redondo com certa ansiedade, disse-me que a fofoca era uma das coisas que o tempo não levou, e que se eu quisesse consultar um profissional gabaritado a respeito, me indicaria o João da Silva Tavares, segundo ele, o primeiro mexeriqueiro de Fortaleza! Fiquei impressionado: este senhor, de tão longevo, deveria ser um hors-concours da fofoca.
Até então, eu sabia que o primeiro fofoqueiro do mundo havia sido o Adão, que, aliás, era cearense, e que tinha se arribado para as bandas do Paraíso em busca de fazer dinheiro, porque todos sabem que, aqui no Ceará, não tem disso não, não tem disso não...
Tavares era mestre em Gramática Latina (um letrado, felizmente) e era temido por quem tivesse rabo de palha. Conforme o Raimundo contou, se a pessoa lhe caísse em desagrado, mesmo que esta não tivesse defeitos, ele os inventava, e o fazia com tal excelência que, rapidamente, a intriga era distribuída em forma de picuinhas e difamações. O seu exercício inventivo e belicoso de “mexeriqueiro, enredador e perturbador público” era até reconhecido oficialmente pela Câmara de Vereadores, vítima-mor da língua espinhenta, embora, por vezes, é claro, com muita justiça...
O mexeriqueiro nos recebeu todo orgulhoso. Veio logo distribuindo algumas crias novas e, interessado no negócio, passou-me algumas dicas que eu tratei de tomar nota com atenção:
— Óquei, óquei, Raymundo, você está certo, existe mesmo uma grande oferta e procura de nosso produto. A fofoca, nesse mundo globalizado, tem uma velocidade de propagação imensa e, para se potencializar esse efeito, é fácil, basta apenas anunciar ao intrigante: “Só falei porque é para você, mas é segredo”. É batata! Pode contar que já, já, sua fofoca volta até você.
Disse-nos mais: que o verdadeiro artesão da fofoca era tão desprendido que, além de não assinar a obra, não confessava sua autoria nem sob tortura! Era sempre assim: me disseram, me falaram, alguém contou... Estava ele até chateado com o injusto estigma que sua profissão lhe conferia. Acreditava ser mais apropriado, ao invés de fofoca, falar-se em “comunicação social”.
Sobre o imóvel da fofocaria, insistia que as suas paredes tinham que — para facilitar o insight visual — ser de vidro; mas o telhado, ao contrário, nunca!
Aconselhou-me montar o negócio diante de uma praça, para facilitar o fluxo de profissionais, e que poderíamos, inclusive, vender uns cafezinhos, pãezinhos, doces, coisas leves como numa casa de merenda, pois o bom ficcionista (assim ele também se denominava) não pode perder muito tempo mastigando, bem sabido que seu instrumento de trabalho é a boca.
— Mas não podemos querer que todos venham à fofocaria. Pelo menos, não ao mesmo tempo, pois se todos estiverem lá, não teremos de quem falar, não é verdade? O ausente é também um grande colaborador em nosso negócio!
Sugeriu a criação de um menu de fofocas onde as pessoas escolheriam e encomendariam a produção. Dentre os tipos de fofoca, teríamos a fofoca-alcunha, um produto mais caro, pois além da fofoca em si, a vítima também ganharia um apelido que o perseguiria pelo resto da vida.
Eu já estava entusiasmado com tantas idéias quando, de repente, percebi sua face transformar-se: acima do olhar meio de banda, a testa franzida, enquanto cofiava a barba mal-feita. Passou a perguntar-me o que eu fazia, onde morava, meu estado civil... Nem sei por que, mas senti um frio na espinha e a orelha a esquentar. Olhei para o Raimundo que, com os ombros encolhidos e os cabelos em pé por sobre o rosto corado, pôs-se a assobiar. Respondi ao curioso:
— Sinto muito, Tavares, mas a editora do jornal me disse que o texto da crônica não poderia mais passar de cinqüenta linhas... Infelizmente, acabou... Uuuufa!
Raimundo de Menezes (1903 – 1984) cearense, biógrafo, dicionarista (Dicionário Literário Brasileiro) e cronista histórico, autor de Coisas que o Tempo Levou (edições Demócrito Rocha) e outros, foi também dedicado presidente (sete gestões) da União Brasileira de Escritores/UBE.
Raymundo Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, membro do Conselho Editorial de CAOS Portátil – um almanaque de contos. Contato: raimundo.netto@globo.com