O seu olhar me abespinhava e espicaçava. Você não discordava frontalmente, mas fazia ironias abjetas. Minha melhor saída era correr ao banheiro e, em meio ablação,  acalmar meus nervos e pele que queimavam avidamente. Sentia-me uma aborígine, de origem suspeita e que tinha certo ar abracadabrante, como se num passe de mágica, pudesse fazer tudo desaparecer, ou simplesmente, dissolver-se no cenário. Mas seu olhar continuava abrasivo, irascível e difícil de aturar. Você se tornara um sujeito achavascado. Rípido e até cruel.
Gostava de dar ordens. Abandonou definitivamente o uso da expressão "por favor"... E, eu fazia pilhéria de sua pose de "chefe da Acrópole". E, com certa acuidade, ia zombando paulatinamente de suas ordens, tal como um aedo inspirado na comédia de erros.
Nossa convivência havia se tornado uma áfrica insana  e quando  chegava a hora de ir para casa, eu ficava triste, pois já sabia o que ia encontrar.
Quem me dera poder fugir! Renunciar. Vestir um longo albornoz e sair incógnita pelo mundo, procurando o aleatório prazer de existir sem opressão.
Distanciar-me-ia mil almudes para só apreciar a solidão que havia longe da algaravia.
E, lá permanecer com meus alfarrábios. Sonhando com os personagens e cenas descritas e, imaginando que aquela dura realidade, era só um momento difícil, que iria passar.
Nesse amarfanhado tempo, passaram-se vinte anos, duas décadas que fui vassala, ancila e vivia com a alma em andrajos. Já não reagia mais. Não elaborava nem um reles anexim. Só vivia a rogar o fim da microtragédia doméstica.
Ao final, quando você morreu, foi a dose anódina para encerrar aquele kharma. E a mim, coube vestir-lhe, pois morrera nu e de braços abertos como se esperasse alguma rendenção. Uma cena digna de ser descrita por Nelson Rodrigues.
Findo meu arcano, de cartas postas sem apótema. Decretei armistício, para nunca mais entrar em inúteis guerras novamente.
Esperei ansiosamente o arrebol daquele dia, contabilizei cada raio rubro a formar o crepúsculo. Mandei rezar-lhes missas e ao, final, procurei esquecer os momentos ruins e, perdoá-lo, pois, afinal, era o algoz de você mesmo.
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 01/05/2020
Reeditado em 01/05/2020
Código do texto: T6934618
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