Maio chegou
Aqui, agora, a manhã está nublada. Vista da janela, a paisagem palmarina leva-me a acreditar em feriado solar, desses que não vejo a um punhado de tempo. A última vez em que assisti a um desses dias foi quando vó ainda era viva. Um dia de frio, tempestade e ausências, em que olhava para o céu e pensava em revolta dos deuses. O céu escurecia de súbito, trovejava desmanteladamente, ventania invadia as janelas de casa; um cenário de frio e muito medo tomava conta do mundo —e eu, menino novo e desconhecedor dos fenômenos meteorológicos—, supunha ser o fim do mundo.
Um tempo depois os deuses acalmavam-se, os trovões cessavam, o frio e o medo davam uma trégua: o mundo voltava a ser dos mortais —e vovó me dizia que não era o fim do mundo. Era só maio chegando; que maio não é um mês mau, que vem para esconder o sol, fazer frio e deixar a gente mais sensível ao medo da finitude. Aceitava sem protesto as argumentações de vovó, para quem maio era o maior mês do ano; não apenas em extensão, mas em importância.
Estou aqui, da janela de casa, de uma casa na cidade, que é diferente de uma casa rural, a ver a chegada de maio. Mistura de nostalgia com revolta. Nostalgia pelo lado desbravador com que maio se veste e se reveste. Sentimento de "Canção Amiga" (Milton Nascimento/Drummond): "Caminho por uma rua / Que passa em muitos países / Se não me veem, eu vejo / E saúdo velhos amigos." Se passar um passante e não me vê, não faz mal; o importante é que ele continue passando. Revolta por saber que a chuva e a presença materna que maio evoca são insuficientes para saciar a sede e a carência afetiva dos bípedes.
Infelizmente o deus maio não é poderoso o suficiente para pôr fim a seca, alimentar todos os que têm fome, controlar a inflação. Não têm WhatsApp, Instagram, Facebook. Inofensivo às doenças letais, às informações informatizadas, aos sabores enlatados. Não tem força de decreto, cadeira na OMS, FMI, G7. Seu principal poder recai sobre o efeito borboleta que erradia, banhando de vida tudo que se move. Daí sua utilidade, principalmente no ano de 2020, mais precisamente nesta manhã de 1º de maio.
Da janela aqui de casa, neste 1º de maio de 2020, vejo a rua passar. Não tem pressa nem calor. Já são quase 11h e o sol está de folga. A impressão que tenho é que maio é excelente mês para feriado. Uma pena ter apenas um, o de hoje, 1º de maio, dia do trabalhador ou seria do trabalho? Qualquer dia destes vou perguntar ao Queiróz, se o encontrar. Por enquanto, vou continuar à janela aqui de casa, a ver as borboletas das coisas. Uma dessas borboletas acaba de pousar sobre a calçada aqui de casa. Vem avisar que maio chegou.