Antídoto e veneno
O relógio marcava 12h45min quando me rendi aos grunhidos do meu estômago.
No restaurante, me deparei com o que parecia ser um animado festival de lambada. Vários queixos rebolavam freneticamente ao ritmo mandibular.
Deixei o estabelecimento saciado. Fome amansada, corpo pesado e uma agradável leveza n’alma. Mas em meu íntimo perdurava um vácuo; havia uma lacuna que precisava ser preenchida para que a sinapse da felicidade se completasse.
O horário de almoço esvaía. Caminhava pelo passeio público acompanhado da sutil sensação de “ausência”. De súbito um delicioso e hipnótico perfume penetrou em minhas ventas e desviou meu rumo. Bastaram alguns passos e uma olhadela enviesada para identificar de onde emanava o olor.
No outro lado da rua, a funcionária de uma modesta lanchonete despejava água fervente do canecão de alumínio no coador duma antiga cafeteira de aço. Rumei em sua direção, pus os cotovelos sobre o balcão e solicitei um bocado daquele “elixir”.
– Na xícara ou em copo descartável? Indagou a balconista.
“Como assim? Que pergunta é essa? Café fresquinho em um reles copo plástico!”. Questionei emudecido.
– Xícara! Quente! Por favor. Respondi indignado.
Não abro mão do rito que antecede o ato de degustar aquela iguaria: Enfiar o pegador metálico no compartimento com água fumegante da cafeteira, pinçar a xícara de louça, incliná-la no ar para que a água excedente escorra, pô-la sobre o pires junto com a colherzinha... São etapas fundamentais, indissociáveis do prazer que aquele momento proporciona.
Temperei com açúcar, segurei na asa da xícara e aspirei aquela orgásmica fragrância. Instantes antes de levá-la a boca minha consciência brecou abruptamente meu entusiasmo, lembrei de minha desagradável companheira “gastrite”. Fiz breve pausa, busquei nos arquivos da memória e rapidamente voltei a sorrir. Havia tomado meu remédio pela manhã. Num átimo me veio em mente às palavras que um desconhecido - aparentando ser etilista de alta patente - me disse há alguns dias em uma farmácia, depois que pediu ao atendente algo para evitar ressaca. “Existem venenos deliciosos! É preciso apenas proteger-se previamente com os antídotos, para que possamos saboreá-los sem temor”.
Elevei a xícara acima de minha cabeça e bradei.
– Um brinde a bomba de prótons!
Xícara seca, papilas gustativas eufóricas. Pareciam dançar o “cancã” parisiense.
No aconchego de minha casa a noite avançava serena. As pálpebras pesavam diante do enfadonho programa na TV. Caminhei para o quarto cambaleando e desmoronei sobre a cama. Instantes depois meu olfato me fez retroagir da fase REM em que acabara de entrar para a ordinária “sonolência”. Aquele sedutor perfume inundou meu quarto. Pela fresta de uma das pálpebras olhei para o relógio e constatei que faltavam poucos minutos para uma da madrugada. “Quem faria café essa hora?” questionei mentalmente. Tentei ignorar o aroma. Uma pequena frase latejou em meu cérebro “Preciso dormir”. Olhos fechados, olfato alerta, cérebro irrequieto. As glândulas do paladar se assanharam, o estômago se acabrunhou. O dilema razão ou emoção mais uma vez me coagia. Aquela dizia “tomar café agora vai tirar seu sono”, esta insuflava em minha mente “Faça o que tem de ser feito! Você terá mais chances de voltar a dormir se atender meus anseios!”. As “gustativas” aplaudiram fervorosamente a segunda sugestão.
Levantei, joguei um contraveneno goela abaixo, pus uma colher do pó preto no coador de pano e coloquei um bocado d’água na chaleira para ferver. Preparei xícara, pires e colher. Em poucos instantes a casa estava impregnada com a estonteante fragrância.
Sorvia o néctar diante da TV. O repórter informava sobre um acidente de carro que matara cinco jovens que retornavam de uma festa. Segundo amigos que os acompanhavam em outro veículo, todos estavam embriagados. Pensei: “Se um deles se comprometesse em não beber para conduzir o carro com segurança no retorno a seus lares, isso não teria acontecido. Ele seria o antídoto”.