A mulher perfeita
1. Recolhido ao doce lar por determinação irrecorrível do vírus chinês, fico, no silêncio mongil do meu gabinete, a ruminar casos e coisas que, num passado longínquo, participei ou testemunhei.
Oh! São tantas as relembranças! Ocuparia, com certeza, o resto da minha vida, já em pleno ocaso, a desembrulhá-las...
2. É isso aí. Nada de novo. Quando a gente chega a uma determinada idade - e não vos direi a minha - passa-se a viver de recordações; que tanto podem divertir como podem matar de saudades.
3. Há algumas décadas, fui padrinho de casamento de um grande amigo, um camarada doido por mulheres. Teve um incalculável número de namoradas e ficou noivo três vezes; no quarto noivado, casou.
4. Namorador, mas com uma vontade enorme de casar, desde que fosse, dizia, "com uma mulher perfeita".
Um dia, chegou pra mim e bradou: "Desta vez eu caso. Encontrei a mulher perfeita. É bonita e carinhosa. Tem pouco estudo mas muita grana. O pai tem roça de cacau e na última safra colheu mais de cem arroubas do sagrado fruto". E logo me convidou para ser seu padrinho. Aceitei.
5. Era inacreditável a euforia do meu distinto amigo. Considerado um Dom Juan, ficara difícil acreditar nas suas intenções casamenteiras.
Estaria ele a enganar a mais uma manceba, com seus galanteios envolventes e esperançosos? Já como candidato a padrinho, fiz-me esta e outras perguntas.
6. Numa noite de maio, ele casou. Uma festa de arromba, como diria o pessoal da "jovem guarda". Muito vinho e um bolo confeitado que enchia os olhos dos convidados, alguns ainda não acreditando no que estavam vendo. Onde ele passou a lua de mel, ninguém soube.
7. A união prosseguia feliz. Até que um maldito laudo médico confirmou a esterilidade dele. Maldito, vírgula: não fosse estéril, já imaginaram quantos filhos teria feito nas mulheres com as quais se divertiu nas alcovas da vida?
8. Após o laudo, o casamento durou pouco mais de um ano. Os dois não se entendiam nem na cama. E quando as brigas entre casados chegam à cama, é o fim de tudo... Deu-se a separação. Como casara com separação de bens, meu amigo ficou a ver navios. Sem bens e sem grana?
9. Procurou o padrinho, que desde o primeiro momento não acreditara no seu conúbio, e lhe disse, com uma lágrima caindo-lhe pela face: "Amigo, enganei-me, não era a mulher perfeita que pensei haver encontrado, depois de tanta experiência acumulada..."
10. Tudo isso aconteceu no século passado; lá pelos anos 1960. Fosse nos dias de hoje, levaria ao amigo (a título de consolá-lo?) este belíssimo texto do Paulo Coelho:
"A mulher perfeita - Nasrundin conversava com um amigo: - Então, Mullah, nunca pensaste em casamento? - Muito. - respondeu Nasrudin - Em minha juventude, resolvi conhecer a mulher perfeita. Atravessei o deserto, estive em Damasco e conheci uma mulher espiritualizada e linda; mas ela não sabia nada das coisas do mundo. Continuei a viagem e fui a Isfahan; lá encontrei uma mulher que conhecia o reino da matéria e do espírito, mas não era bonita.
Então resolvi ir até o Cairo, onde, finalmente, jantei na casa de uma moça bonita, religiosa e conhecedora da realidade material.
- E por que não casou com ela? - Ah, meu companheiro! Infelizmente ela também procurava um homem perfeito".
11. Perdi meu amigo de vista. Seguimos caminhos bem diferentes. Ele virou médico e eu advogado. No início deste ano, 2020, num restaurante de Salvador, lá estava ele, discreto e pensativo.
Na sua mesa, seus dois filhos, Isaura e Mário, ambos casados. Ao seu lado, Julieta, sua companheira, fagueira e bonita, e, como ele, grisalha.
Depois de um abraço cheio de recordações, perguntei-lhe ao ouvido: Zé, ela é, afinal, a mulher perfeita que você procurava? E ele: "Sim".
1. Recolhido ao doce lar por determinação irrecorrível do vírus chinês, fico, no silêncio mongil do meu gabinete, a ruminar casos e coisas que, num passado longínquo, participei ou testemunhei.
Oh! São tantas as relembranças! Ocuparia, com certeza, o resto da minha vida, já em pleno ocaso, a desembrulhá-las...
2. É isso aí. Nada de novo. Quando a gente chega a uma determinada idade - e não vos direi a minha - passa-se a viver de recordações; que tanto podem divertir como podem matar de saudades.
3. Há algumas décadas, fui padrinho de casamento de um grande amigo, um camarada doido por mulheres. Teve um incalculável número de namoradas e ficou noivo três vezes; no quarto noivado, casou.
4. Namorador, mas com uma vontade enorme de casar, desde que fosse, dizia, "com uma mulher perfeita".
Um dia, chegou pra mim e bradou: "Desta vez eu caso. Encontrei a mulher perfeita. É bonita e carinhosa. Tem pouco estudo mas muita grana. O pai tem roça de cacau e na última safra colheu mais de cem arroubas do sagrado fruto". E logo me convidou para ser seu padrinho. Aceitei.
5. Era inacreditável a euforia do meu distinto amigo. Considerado um Dom Juan, ficara difícil acreditar nas suas intenções casamenteiras.
Estaria ele a enganar a mais uma manceba, com seus galanteios envolventes e esperançosos? Já como candidato a padrinho, fiz-me esta e outras perguntas.
6. Numa noite de maio, ele casou. Uma festa de arromba, como diria o pessoal da "jovem guarda". Muito vinho e um bolo confeitado que enchia os olhos dos convidados, alguns ainda não acreditando no que estavam vendo. Onde ele passou a lua de mel, ninguém soube.
7. A união prosseguia feliz. Até que um maldito laudo médico confirmou a esterilidade dele. Maldito, vírgula: não fosse estéril, já imaginaram quantos filhos teria feito nas mulheres com as quais se divertiu nas alcovas da vida?
8. Após o laudo, o casamento durou pouco mais de um ano. Os dois não se entendiam nem na cama. E quando as brigas entre casados chegam à cama, é o fim de tudo... Deu-se a separação. Como casara com separação de bens, meu amigo ficou a ver navios. Sem bens e sem grana?
9. Procurou o padrinho, que desde o primeiro momento não acreditara no seu conúbio, e lhe disse, com uma lágrima caindo-lhe pela face: "Amigo, enganei-me, não era a mulher perfeita que pensei haver encontrado, depois de tanta experiência acumulada..."
10. Tudo isso aconteceu no século passado; lá pelos anos 1960. Fosse nos dias de hoje, levaria ao amigo (a título de consolá-lo?) este belíssimo texto do Paulo Coelho:
"A mulher perfeita - Nasrundin conversava com um amigo: - Então, Mullah, nunca pensaste em casamento? - Muito. - respondeu Nasrudin - Em minha juventude, resolvi conhecer a mulher perfeita. Atravessei o deserto, estive em Damasco e conheci uma mulher espiritualizada e linda; mas ela não sabia nada das coisas do mundo. Continuei a viagem e fui a Isfahan; lá encontrei uma mulher que conhecia o reino da matéria e do espírito, mas não era bonita.
Então resolvi ir até o Cairo, onde, finalmente, jantei na casa de uma moça bonita, religiosa e conhecedora da realidade material.
- E por que não casou com ela? - Ah, meu companheiro! Infelizmente ela também procurava um homem perfeito".
11. Perdi meu amigo de vista. Seguimos caminhos bem diferentes. Ele virou médico e eu advogado. No início deste ano, 2020, num restaurante de Salvador, lá estava ele, discreto e pensativo.
Na sua mesa, seus dois filhos, Isaura e Mário, ambos casados. Ao seu lado, Julieta, sua companheira, fagueira e bonita, e, como ele, grisalha.
Depois de um abraço cheio de recordações, perguntei-lhe ao ouvido: Zé, ela é, afinal, a mulher perfeita que você procurava? E ele: "Sim".