NADA SERÁ COMO ANTES
Aqui em casa, na varanda, em meio a vasos com flores e folhagens coloridas, há algumas cadeiras plásticas dentre as quais uma que considero minha preferida. Ao sentar-me tenho diante dos olhos um pedaço de céu às vezes com cumulus, cirrus, nimbus ou stratus, num dançar lento, mas inflexível, sem a mínima possibilidade de retorno...
As nuvens seguem seu caminho forçadas pelos ventos que, vindos de não sei onde, atuam de modo imperativo sem qualquer resquício de reação. Em meio a tal cenário posso compreender que aquelas formações jamais retornarão ao mesmo contorno do minuto ou do segundo anterior.
Dia desses, em meio a esse dançar magnífico, as formas se alteravam em uma sequência sem fim, embora lentas, seguindo seu caminho de um passado indefinível para um futuro da mesma incerta configuração.
Foi então que meus pensamentos foram tangidos por uma frase que li ou ouvi não sei mais onde. Lembro-me que foi dita por um pensador ou por alguma personagem das hostes venerandas. Dizia assim: “O início do futuro está no fim do passado”.
Nos meados do início dos meus tempos, o Rio de Janeiro era o cenário de diversas atividades artísticas conglomerando multidões que explodiam, alternadamente, em vaias e aplausos ao que vinha, dos palcos, nos cantares e nos sons das músicas de protesto ou da bossa nova.
Na época não sentia muita atração pelas composições da turma conhecida como “Clube da Esquina”, que era o centro da criação musical dos artistas mineiros. Minha ligação musical tinha mais a ver com as letras e ritmo da bossa nova falando de amor, céu, mar, garotas e temas profundamente inerentes à paisagem e à vida carioca.
Na música mineira, dentre outros, pontuavam Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Flávio Venturini, Lô Borges, com sucessos sempre garantidos. No entanto boa parte do acervo musical dessa linha trazia cantares voltados a questões da ordem político-social conhecida como “música de protesto”.
Nesse período, pós 64, artistas e compositores, de pensamento contrário, manifestavam seu desagrado ideológico através das composições que eram apresentadas nos “Festivais”. Um deles tornou-se famoso por extrapolar as fronteiras do nosso país, o “Festival Internacional da Canção” (FIC), que agitou a cidade de 1966 a 1972.
Inicialmente, o “FIC” foi difundido pela TV Rio e, posteriormente, pela TV Globo. Com ele artistas e turistas de todos os quadrantes tinham, no Rio, um destino previamente traçado.
Estou citando essa passagem da música brasileira para abordar o assunto que deu título à crônica e que nada tem a ver com artistas, festivais ou turismo. O fato é que, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos foram autores de uma canção que veio completar o meu pensamento iniciado na varanda quando, olhando a dança das nuvens, lembrei-me do passado do meu presente pensando no futuro do meu passado...
O título da canção parece ter sido obra divinatória ou sopro de algum espírito preditivo. Certo ou não é o que está bem diante dos nossos narizes, sucesso tanto na voz de Elis Regina quanto do próprio Milton Nascimento, este, incluso no álbum “Clube da Esquina”, datado de 1972. “Nada Será Como Antes” é o título. Eis a letra:
“Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã.
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes, amanhã”.
Não é necessário muito esforço para entender a clareza dos versos quando os comparamos com o que experimentamos nos dias atuais. Afinal, na incerteza dos próprios acontecimentos do presente, como configurar o futuro que já bate as nossas portas? Com o confinamento, isolamento, ou o que quer que seja, como estamos vivendo os nossos dias a partir do momento em que percebemos “já estarmos com o pé nessa estrada”?
Há quantos dias já não vemos nossos parentes próximos e os nossos amigos? Como identificar ou planejar o “qualquer dia a gente se vê”? Onde, exatamente, podemos situar esse incógnito “qualquer dia"?
“Que notícias nos dão dos amigos” a não ser aquelas para as quais apelamos com o concurso do agora restrito “Zapzap”? E “que notícias me dão de você”, a não ser aquelas caretinhas e bonequinhos ou palminhas e demais tipos de imagens?
O que já acontecia através dos neurônios da Inteligência Artificial, às ocultas para a maioria dos viventes, incrementado pelo isolamento imposto, restringiu nossas conversas pessoais à mera retransmissão de palminhas, bonequinhos, figurinhas ou textos escritos, não sabemos por quem, repassados, replicados, viralizados, bombados, quase todos transitando temas que nada de pertinente nos tem a dizer ou mostrar.
Já quase não trocamos idéias, quase não conversamos, tudo fica muito restrito nesses tempos de confinamento às mensagens sob controle da Inteligência Artificial. E o contato pessoal, os abraços, os beijos entre os casais? E o namoro ou a sedução por trás das máscaras? Para aonde foi o passeio pelas ruas e praças? E o shopping, as baladas, o cinema, o cachorro quente no barzinho da muvuca? Para onde foi a agitação da criançada? E a alegria dos idosos rodeados pela netalhada?
Ruas vazias, comércio fechado, desemprego massivo, gente sem salário, sem emprego, firmas fechando, fábricas parando a produção, tudo isso envolto nas mais antagônicas opiniões de especialistas e autoridades quanto os destinos da pandemia que nos assola.
Não é necessário aumentar as contas do rosário do sofrimento social que estão nos infligindo, tanto os difusores do agente pandêmico quanto os que divergem nas opiniões lançadas e decisões mandatórias impostas ao indivíduo que já desconfia ser ou não um cidadão. Afinal, na atual contingência, o quê é ser um cidadão?
Dando um pulo ao passado, temos ensinamentos nos livros de História dando conta de que a humanidade já passou por diversas fases cíclicas de surgimento, desenvolvimento, apogeu, declínio e extinção. Não é difícil constatar que esses acontecimentos foram reais em impérios que se espalharam pelo mundo, no suceder dos anos, que nasceram, dominaram, declinaram e foram extintos dando margem a novos ciclos civilizatórios.
Pelo encaminhamento da situação que nos envolve não é sem sentido projetarmos nosso pensamento para a possibilidade de que estejamos nos aproximando dos estertores de uma conjuntura em decadência para o ingresso em outra em que, possivelmente, em vez de risos poderemos ter que ouvir, também, o ranger de dentes...
Bem! Como ainda temos um pouco de massa encefálica liberta do controle do olho que tudo vê e, enquanto essa nova tendência não anula o restante, não é difícil admitir que, com as consequências dos mecanismos políticos e sanitários que nos estão sendo impostos, fiquemos na impossibilidade de pensar ou combinar aquela “qualquer hora" e aquele "qualquer domingo para a gente se ver”. Então, teremos que voltar, ao mesmo tempo, ao título e ao final da música adequando-nos aos tempos chegantes e entender que “Nada será como antes, amanhã”.