Se não me falha a memória...
Vejo num calendário perpétuo — para onde me levou um linque inesperado — que o 25 de setembro de 1948 caiu num sábado, tinha eu apenas três meses e nove dias de idade, no velho bairro do Caju, atrás do cemitério. Como ainda não inventaram nada que nos permita consultar o arquivo real do nosso próprio tempo, algo como um cinema dos episódios cotidianos de toda a nossa vida, limito-me a considerar que a essa hora devo estar no berço, ou nos braços de minha mãe, à porta da rua, vendo um bonde drummondiano passar. Não tenho como saber se papai está ao lado dela — ele é diácono da Igreja Batista e não larga a Bíblia —, mas minha irmã mais velha, sim, pois há uma certa vibração de ciúme no ar que não me deixa muito à vontade. Bato as pernas e os braços, exasperado com a pressão psicológica. Ela é três anos mais velha do que eu e tem cara de rato. Eu também, lógico, mas ainda sou filhote e não faço a menor idéia do que seja um espelho. Sei apenas que tem muito a ver com o susto que as minhas tias levam sempre que se olham na porta do nosso guarda-roupa. Outra vantagem é que meus cabelos vermelhos distraem um pouco a curiosidade das vizinhas, que agora se juntaram à minha mãe para dizer um monte de mentiras sobre mim. Mamãe sabe muito bem que pôs no mundo um garoto feio, mas é coruja-de-apólogo e está toda feliz da vida com aquele projeto de poeta nos braços. Moramos numa vila de casas portuguesas, com um buraco quadrado no telhado pra gente poder brincar na chuva sem sair de casa. Há um campo de futebol ao lado da vila, e ouço o alarido de todos aqueles pernas-de-pau maltratando uma bola branca. De noite ela vai toda chorosa para o céu e fica muito bonita lá em cima. De repente, sinto que mamãe me passa para outros braços, alguém que chegou de forma sorrateira. É papai. Tem voz de pernambucano, coisa para ser confirmada mais tarde, e parece que está perguntando pelo almoço. Mamãe torce o nariz e manda ele passear, pega um bonde, vai até a praia, vai pentear macaco, primeiro é a papinha dele. Dele sou eu, que bom! O bonde drummondiano volta, larga um monte de pernas cabeludas na parada do campo de futebol, mamãe entra e põe-me no berço. Depois disso, não me lembro mais, acho que dormi até a hora da papinha.
[25.9.2006]
Vejo num calendário perpétuo — para onde me levou um linque inesperado — que o 25 de setembro de 1948 caiu num sábado, tinha eu apenas três meses e nove dias de idade, no velho bairro do Caju, atrás do cemitério. Como ainda não inventaram nada que nos permita consultar o arquivo real do nosso próprio tempo, algo como um cinema dos episódios cotidianos de toda a nossa vida, limito-me a considerar que a essa hora devo estar no berço, ou nos braços de minha mãe, à porta da rua, vendo um bonde drummondiano passar. Não tenho como saber se papai está ao lado dela — ele é diácono da Igreja Batista e não larga a Bíblia —, mas minha irmã mais velha, sim, pois há uma certa vibração de ciúme no ar que não me deixa muito à vontade. Bato as pernas e os braços, exasperado com a pressão psicológica. Ela é três anos mais velha do que eu e tem cara de rato. Eu também, lógico, mas ainda sou filhote e não faço a menor idéia do que seja um espelho. Sei apenas que tem muito a ver com o susto que as minhas tias levam sempre que se olham na porta do nosso guarda-roupa. Outra vantagem é que meus cabelos vermelhos distraem um pouco a curiosidade das vizinhas, que agora se juntaram à minha mãe para dizer um monte de mentiras sobre mim. Mamãe sabe muito bem que pôs no mundo um garoto feio, mas é coruja-de-apólogo e está toda feliz da vida com aquele projeto de poeta nos braços. Moramos numa vila de casas portuguesas, com um buraco quadrado no telhado pra gente poder brincar na chuva sem sair de casa. Há um campo de futebol ao lado da vila, e ouço o alarido de todos aqueles pernas-de-pau maltratando uma bola branca. De noite ela vai toda chorosa para o céu e fica muito bonita lá em cima. De repente, sinto que mamãe me passa para outros braços, alguém que chegou de forma sorrateira. É papai. Tem voz de pernambucano, coisa para ser confirmada mais tarde, e parece que está perguntando pelo almoço. Mamãe torce o nariz e manda ele passear, pega um bonde, vai até a praia, vai pentear macaco, primeiro é a papinha dele. Dele sou eu, que bom! O bonde drummondiano volta, larga um monte de pernas cabeludas na parada do campo de futebol, mamãe entra e põe-me no berço. Depois disso, não me lembro mais, acho que dormi até a hora da papinha.
[25.9.2006]