A paixão do oitentão


     1. Meu amigo Fulano, um oitentão, telefonou para me dizer que estava "morrendo de paixão" por uma jovem mulher. Notara, entretanto, que a garota não ligava pros seus afagos verbais.
     Um tanto desiludido, perguntou se eu conhecia um poema bem romântico, capaz de lhe devolver a paz de espírito que lhe fora tirada por ela...sem me dizer o nome da pequena.
     2. Contou que conhecera a moça em uma loja de bijuterias, de um Shopping de Salvador, dias antes de ele ser interditado pelo vírus chinês.      
     Entrara na loja para comprar um colar para dona Beltrana, sua mãe; acrescentando que, no dia das mães, ela completará 90 anos. Assustei-me com a idade da velha. Não lhe dava esses anos todos.
     3. Diante do meu espanto, que infelizmente não me foi possível esconder, meu amigo fez as seguintes observações: "Olha, ela está lúcida, lúcida. Dia desses, a surpreendi xingando o Aedes Aegypti e a condenar o Fake News".
     Como a velha sabia de tudo isso, indaguei. E o amigo: "Ouvindo seu radinho de pilha, que não sai da sua mesinha de cabeceira". 
     4. E voltou a me perguntar pelo poema, mostrando-se ansioso e angustiado; como, aliás, ficam os apaixonados da "terceira idade".
     Aproveitei para lhe transmitir a advertência feita por Jean Cocteau, poeta francês (1889-1963): "É necessário não permanecer jovem por muito tempo. Quando isso ocorre, envelhecemos mal".
     5. Quis conhecer melhor a pessoa que despertara no amigo aquela irrefreável paixão. Precisava saber o mínimo sobre a jovem para poder situá-la nos versos de um dos poetas românticos, com livro repousando na minha estante, onde os vates se encontram e esperam a visita de seus admiradores. 
     6. Vou descrevê-la como Fulano a desenhou. É uma mulher bonita; um pouco mais baixa do que ele; morena clara; olhos castanhos e eloquentes; pernas torneadas e sem varizes; seios túrgidos e suplicantes, "os mais lindos do mundo". 
          Dei um razoável desconto, pois, conhecia o grau dos óculos do amigo e a grandeza do seu coração, constantemente apaixonado. 
     7. Fiquei com ele ao telefone, enquanto me encaminhava para minha estante. Ainda consegui ouvir sua respiração apressada; como quem, numa noite de ventos fartos e fortes, marcara um encontro numa esquina com alguém que não garantira comparecer: apenas prometera. 
     8. Minutos depois, voltei, trazendo no bolso um poema de Álavres de Azevedo, cujo aniversário de morte, não lembrado, ocorreu no dia 25 de abril - 168 anos. O nome do poema: "Meu anjo" ; buscara-o nas entranhas do livro "Lira dos vinte anos". 
     9. Li, em voz alta, o primeiro verso: - "Meu anjo tem o encanto, a maravilha/ Da espontânea canção dos passarinhos;/ Tem os seios tão alvos, tão macios/ Como o pelo sedoso dos arminhos". Li e repeti. Meu amigo não dava sinal de vida. Instalara-se um profundo silêncio do outro lado da linha. 
     Desliguei o telefone. E fui cuidar dos meus afazeres.
     10. Dias depois, Fulano me telefonou para dizer o seguinte: que (naquele dia) dormira ao telefone; que encontara a jovem, que lhe roubara o sossego, com outro homem... "e de mãozinhas dadas"; que estava arrasado". 
          Consolei-o como pude, ao tempo em que guardava, em uma de minhas gavetas, o  poema "Meu anjo", do poeta romântico Álvares de Azevedo. Cousas da vida... 
              
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 26/04/2020
Reeditado em 27/04/2020
Código do texto: T6929351
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