Ver Cafu
Quando eu era pequeno, fui flamenguista. Não pelo Flamengo, devo advertir. É até verdade que segui a moda da época e usei anel com o escudo do time. Porém, aquilo que relativiza o meu apreço pelo clube de regatas é o fato de que eu usava mais do que o anel: o brinco de argola e cruz, típico de um adepto do Romário Futebol Clube.
Na escolinha de futebol, onde entrei com 5 anos de idade e, portanto, antes do Romário ir para o Flamengo, pediram aos jogadores da categoria fraldinha que escolhessem qual seria o número de cada um naquele ano. Escolhi o número 11 por causa do Centroavante. Até me espantei que não houvesse briga para a escolha da mesma camisa. Não a usei só naquele ano, mas vesti a camisa 11 no futebol de salão até o final da adolescência, quando passaram a endeusar a 10 de Zidane e Ronaldinho Gaúcho.
Naquele tempo, era véspera da Copa do Mundo de 1994. Havia uma promoção de não me lembro qual produto em que, se a gente escrevesse uma carta, ganharia uma chuteira do Romário. Com aquela idade, já sabia escrever, mas não sabia o que era promoção. Na minha cabeça, se escrevi a carta, era certo que receberia o prêmio. Talvez até entregue pelo próprio Romário. Por isso, esperei até depois da Copa. Não veio a chuteira, mas veio o Tetra e veio o prêmio de melhor jogador do Mundial. Agora, sim, seria mais prazeroso ganhar a tão esperada chuteira.
Enquanto esperava a chuteira, ainda naquele ano, jogando uma das nove bolas que eu cultivava em casa, minha mãe me mandou ir ligeiro tomar banho. Nós iríamos no primeiro, recém-inaugurado, hipermercado da cidade. Inquieto desde sempre, na minha cabeça, ela tinha dito: toma banho - e vê que se comporta -, porque vamos ver Cafu. Que frustração! Naquela época, Cafu não era ainda o capitão do Penta, não tinha jogado na Roma e no Milan e, portanto, era como um mercadinho de bairro se comparado ao hipermercado internacional que era o Romário.
À minha revelia, pegamos a avenida que ligava minha rua ao hipermercado. Já de pronto, se viam os letreiros em cores azuis: Ca-rre-fo-ur – li como uma criança que nunca tinha visto palavra parecida. Logo associei. Pensei ser uma piada de muito mal gosto minha mãe ter falado “ver Cafu”, em data próxima a frustração da não recebida chuteira. Vê que se comporta porra nenhuma! Cheguei no hipermercado, corri de corredor em corredor, joguei-me no chão, passei por debaixo das gôndolas para ir para outra sessão, me perdi. Por fim, fui anunciado como perdido no sistema de som. Passei a ter raiva do hipermercado francês – e de Cafu.
Voltando ao Flamengo. Um ano depois de ter comemorado o Tetra e conhecido o primeiro hipermercado estrangeiro da cidade, em 1995, é que se deu minha adesão pragmática ao clube. Na ocasião, anunciaram o baixinho como principal contratação para marcar o ano do centenário rubro-negro. Agora, sim, seria mais importante ter a chuteira do Romário, afinal, toda semana poderia apontar a TV e mostrar a todos que eu tinha uma chuteira daquele cara. Veio, então, a final da Taça Guanabara e o cara confirmou o título metendo três gols. Saí a rua ao som de “vai Flamengo, balança a rede do adversário, vai Flamengo, comemorando o seu primeiro centenário”. Centenário deveria ser um título importante. Então, passei a achar que a chuteira havia se valorizado ainda mais. Por isso, a queria como nunca.
A primeira metade do ano passava, eu ia mais vezes no hipermercado francês, e a chuteira do Romário, ficava para trás. Passado quase um ano do título da Copa do Mundo, havia me dado conta de que a chuteira do Romário havia se valorizado tanto que não mais a receberia. Na segunda metade de 1995, não chegou a chuteira do Romário, mas a primeira chuteira, de presente de meu pai. Numa das compras que fazíamos, ele a comprou no hipermercado francês, Carrefour. Chegou também o gol de barriga do craque tricolor, Renato Gaúcho, e chegou o título carioca do Flu em cima do Flamengo do baixinho. Foi a primeira lembrança que eu tive de torcer pelo Fluzão - e simpatizar com o Cafu.
Depois da frustração da chuteira do Romário e de não querer ver Cafu como consolação, me resignei. Passei a gostar de fazer compras para, no final, comer nas lanchonetes que só existiam no Carrefour; a calçar a chuteira do meu pai; e a ostentar a camisa e a faixa do Rei do Rio. Porém, três anos depois, em 1998, o Flu caiu e o Brasil perdeu a Copa. E comecei a suspeitar que não foram boas escolhas. Achava que tinha começado aí a derrota histórica por três a zero do Brasil para os produtos da França: quando passamos a aceitar Cafu, mas abrimos mão da chuteira do Romário.
E foi preciso mais quatro anos para que, em 2002, se revelasse que, na vida, fiz boas adesões. O Flu foi novamente campeão e foi, definitivamente, melhor ver Cafu a ter a chuteira do Romário.