Dias antes da quarentena

Semana passada vivenciei algo que me deixou feliz, mas não de uma forma externa; os meus olhos se repuxaram e, juro, até chegaram a provocar covinhas nos pequenos, porém perceptíveis, pés de galinhas que não faz muito tempo se instalaram nos cantos dos meus olhos. Mas foi algo que só eu vi em mim.

Uma manhã típica: acordar, me arrumar, ficar atento na hora e sair de casa. Essa é aparte mais enfadonha da minha rotina. Tenho a esperança de algum dia, ao entrar no ônibus, ser surpreendido com a aquele tão desejado assento vago. Só quem lê em pé no ônibus sabe dos malabarismos realizados para conseguir chegar ao fim de cada linha. E dessa vez minha leitura era "Rei Lear". Fiquei muito feliz ao terminá-lo, pois agora já posso me decepcionar com o filme.

No ônibus, estava eu sentado, lendo meu companheiro, quando escuto a conversa de duas amigas. Era o dia do aniversário de uma delas, a "amiga", que era como a aniversariante chamava a outra, levou um pequeno pacote que foi aberto ali mesmo na parte articulada do Circular Sul. O que era o presente eu não sei, pois não tirei os olhos do meu livro. Fingi estar em outro lugar por alguns instantes.

Em certa altura da viagem mais duas meninas se juntaram a elas. Não sei o nome de nenhuma delas.

O que captou minha atenção foram os assuntos da conversa daquelas garotas de ensino médio. Penso que podem estar cursando o terceiro ano do ensino médio, pois escutei algo sobre a profissão que uma delas almeja pagar até 10 mil e que alguém que ela conhece está trabalhando por 7, sobre a economia do Brasil e da China, corona vírus e aulas de inglês. O ponto alto da viagem foi quando escutei uma delas falando que precisava ler mais. Não sei se o fato de eu estar com a cara enfiada no meu livro teve influência naquele comentário. O que se seguiu foi: "Amigas, preciso parar de conversar com vocês e ir no ônibus lendo, mas não dá para ler em pé. Nunca conseguimos lugar para sentar". Por dentro eu estava: "O QUÊ????".

Enquanto aquela aniversariante continuar esperando o ambiente externo lhe proporcionar a oportunidade que melhor se encaixa no padrão pré determinado por ela, nunca lerá nada. E tudo isso enquanto estavam perfurando os olhos do conde de Gloster.

Diego Crevelim
Enviado por Diego Crevelim em 21/04/2020
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