Zero
Zero
maria da graça almeida
Estava atrasada para a aula e naquele dia teria
prova.
Mesmo assim, resolvi passar pela casa da tia Hilda.
Precisava ir ao banheiro e também estava com
vontade de comer o pão que toda manhã ela fazia.
A manteiga, escorrendo pela massa fumegante...
Delícia de dar água na boca.
Logo que entrei, encontrei-a no quintal.
Forno desligado. Nada de pão. Estranhei.
Contou-me que fora ao médico e que estava
com um caroço no seio.
Disse-me tão naturalmente que fiquei ali parada.
Nada a comentar...
Minha prima, achegando-se, cochichou:
-Será que ela vive até o Natal?
Virei-me e, com desprezo, nem lhe respondi.
No banheiro, olhei com desolação para o pacote
de fraldão sobre o banquinho.
Coitado do meu primo! Tão jovem e já dependente
daquele incômodo.
Enquanto, de saída, colocava a blusa para dentro
da calorenta saia de casimira azul, percebi
uma coisa esquisita avolumar-se dentro do
vaso sanitário.
Olhando, sem entender, estarrecida, já perto da
porta, vi, levantar-se do vaso, um potro,
todo molhado.
Num solavanco, torci a maçaneta, corri para
o quintal.
Minha tia dependurava peças de roupa no varal.
Olhou-me espantada:
- Que foi, menina?
- Tia, tia...saiu um cavalo de dentro do vaso. Um
CA-VA-LO... Juro!
- Chi...Outro?
- Tia! OUTRO? -eu estava quase gritando.
- É! Há uns quinze dias saiu um de lá -e, como
se fosse a coisa mais natural do mundo, virou-se
para continuar a tarefa-.
Voltei correndo, entrei e o meu primo, o do
fraldão, já estava com o potro na sala, que,
pingando, molhava o tapete, os sofás.
Olhou-me com ar de triunfo:
- Foi difícil, mas consegui tirá-lo vivo!
- Deveria tê-lo deixado, para que o pessoal da
Vigilância Sanitária acreditasse que o bicho veio
mesmo pelo esgoto -recriminei-o, atropeladamente.
- Não faz mal, lá dentro há mais um! Ainda maior do
que este aqui!
Os olhos quase saltando, ordenei à minha prima:
- Chame os bombeiros!
Ela, com jeito aparvalhado:
-Não sei o número...
-Procure-o na lista, ora! -respondi-lhe, impaciente.
Espiei o relógio, tinha poucos minutos para
chegar ao colégio.
A prova de desenho era na primeira aula.
Sai correndo, nem fechei o portão.
Enfim, eu sentada e ainda trêmula, vejo a
professora que coloca a folha branca
sobre minha carteira.
Determina com voz rouca, grave:
- Desenhem cenas do cotidiano. Cenas reais.
Enquanto, de soslaio, percebia que meus colegas
retratavam crianças esmolando; homens na calçada;
garoto entregando jornal,eu desenhava um cavalo...
dentro do vaso sanitário.
A professora, que passeava pela classe, abaixou-se sobre minha carteira
e, com a voz de trovão:
- Eu pedi cena real. REAL!Com a companheira inseparável,
a caneta vermelha, escreveu sobre meu desenho:
Zero! Colocou um traço. Assinou embaixo.