NOS QUEREM NO ATÊRRO
NOS QUEREM NO ATÊRRO
Eu estou lendo sua primeira carta para mim, o papel está amarelado pelo tempo, mas ainda está lá o coraçãozinho e as flores que desenhaste nas bordas, o perfume do papel ainda resiste só no ofalto da minha mente. Nela, uma resposta ao meu pedido de namoro junto com um anel paupérrimo, me diz que me aceitas, e que me via passar todo dia frente sua janela, que me achava um “homem lindo” apesar de meu cabelo comprido da minha calça extravagante boca sino, da medalha nas minhas botas, do meu medalhão no pescoço e correntes no pulso. Que eu era um contestador sem causas, mas por isso mesmo romântico e sincero. Sonhavas comigo, e eu contigo.
Ao ler, você não está mais aqui, fazes parte da imensa saudade que tenho de idade, me deixaste provocando uma lacuna imensa no meu eu, um caminho paralelo tornou-se um só traço, cambaleante e em declínio, término de sonhos, ansiedade por ver o fim dela.
Ao sentir os incômodos de dores, caminhadas pesadas e lentas, olhar que não vê muito nem tudo, sonho acordado com amigos que comigo desfrutaram aquela saudade, as partidas de racha na praia, as madrugadas de Natal e Ano Bom nas esquinas comendo caranguejo com cachaça pego nos mangues do Trapiche, o esfrega com as empregadas domésticas debaixo dos coqueiros da Praia do Sobral, o violão do Pedro Luciano, e Carlinhos a imitar Chaplin, A Escola de Samba infantil do Prado, o Carnaval da Praça Moleque Namorador. As noites em que invadíamos as residências com a Radiola e os discos mais as pingas, nas casas dos amigos para fazer festas surpresas, tudo regado a “Volta pela rua a casa da Márcia”.
No banco da praça Deodoro revejo os domingos dos passeios “quem me quer”, e a cantoria na Rádio Difusora. Sem a sombra de você a me acompanhar com a satisfação interna de que depois de tudo passaria sob sua janela como a dar boa noite e que você estava lá, me vendo passar....
Hoje sou ridicularizado pelos moleques nas ruas, atropelado pelos motoristas que se sentem fortes ao maltratar os fracos, pelos bandidos que me roubam na rua, na saída do banco, entrando na minha conta de aposentadoria e sacando em meu nome, pelos ônibus que me ignoram no ponto, pela pressa da juventude em me tirar da frente, pelos cambistas na madrugada das filas do Inss, pela carestia dos medicamentos que levam quase tudo que recebo, pelo meu organismo que não aceita mais alimentos normais, pela insônia que provoca nostalgias, tristezas e saudades imensas, pela Solidão da velhice que não tem mais amigos, parentes ou pelo menos um conhecido para trocar as idéias que partilho nem partilhar as alegrias e tristezas que passamos. Clamamos a morte não só como a covardia de não querer viver e sofrer mais, não gente, sofrer já sofremos uma vida a mais que vocês, e só aumentamos o sofrimento com a fraqueza do corpo e do modo de vida atual onde não há respeito nem admiração pelas coisas feitas e experiências adquiridas pela geração anterior, somos ridicularizados por ter dado nosso suor, nossa força vital, nosso entusiasmo para construir o bairro, a cidade, o estado e o pais que aí está, nada está como na década de 50 do século passado, deve-se isto àquela geração que eu represento, e mostro minhas armas:
Minhas pernas arqueadas e cansadas de levar este corpo,
Meus olhos de visão curta e cansada de tanto ser usada em tempos que claridade era luxo.
Meus sentidos usados, corroídos e imprestáveis, usados para trabalhar, idealizar, fazer.
Minhas mãos enrugadas, manchadas que deram vida, carinho, ternura, fizeram.
Meu eu, só, faz sombra sob este sol que ainda brilha, no caminho por mim pavimentado, nas bordas ajardinadas cuja sementes semeei, nos cruzamentos que pavimentei, ouço passar xingamentos, imcompreensão, atrevimentos, pressa de se me livrar como um monte de lixo ambulante, usado e imprestável que deveria ir para o aterro sanitário.
É isso minha bela esposa, no seu Céu não haveria um lugarzinho para nós trocarmos umas carícias não? Não é só saudade minha bela, é necessidade de voltar a ser útil e querido.