Como atravessar
                   a quarentena


     1. Continuo cumprindo, sem chiar, o que os doutores estão exaustivamente aconselhando, ou seja, que fiquemos em casa. Eles sabem das coisas. Tem quase um mês que não ponho o pé fora do meu apartamento. Nem à garagem do meu prédio tenho ido para acordar meu carro. 
     2. Os amigos, que há muito não me encontram perambulando pelas ruas do meu bairro, têm telefonado perguntando por que nunca mais apareci. Indagam se estou acamado; se estou viajando; ou se virei um emérito preguiçoso. 
     3. Respondo a todos que só sairei de casa quando o maldito do Covid-19 se mandar. Se despedir da Bahia e for pros infernos.
          Vejam só, indiferente aos estragos que o tal vírus está causando em Salvador, o Frota - pasmem! - convidou-me para uma "caminhadazinha na orla da Pituba". Pode?
     4. As amigas, nos seus telefonemas estranhando o meu sumiço, são dramáticas. Perguntam: "Você morreu?" E de algumas vem o convite: "Apareça, mesmo de máscara!".
          O difícil é convencê-las de que, sem máscara, sou um coroa feio, imagine a tragédia com esse troço no "focinho".
     5. Pois é, Tenho resistido bravamente aos apelos para que abandone, de vez, a quarentena e ponha o pé no mundo. Não, não sou um irresponsável (Alô...).
          Jamais irei, digamos, ao Terreiro de Jesus, no Centro Histórico de Salvador, comer um acarajé ou um abará; jamais irei à Bonjour , a delicatessem de minha preferência, a dois passos de meu prédio, comer um sanduiche ou beber um guaraná. 
          Fico em casa, fazendo um pequeno Cooper, quando me dá vontade, o que nem sempre acontece.
     6. Muita gente vem me perguntando o que faço, além do Cooper, nessa "prisão domiciliar. Querem saber se meus dias e minhas noites estão sendo monótonos, enfadonhos ou coisa parecida. Digo que não. Lembrando que, durante seis anos, vivi, internado, nos claustros franciscanos, o que não deixa de ser um isolamento.
     7. O que faço, então, para não me entediar: ouço música, escrevo muito, leio bastante e ainda me arrisco a preparar meus lanches.
          São atividades que preenchem perfeitamente o tempo de quem é obrigado a ficar em casa. Com isso, não dou vez à depressão ou à inércia profunda, que leva ao cansaço sem motivos.
     8. Mudei-me para o meu gabinete. E, entre música e livros, vou atravessando, praticamente sem sentir, essa querentena chata, porém, benéfica. Aciono o Spotify, e tenho quase mil músicas à minha disposição. Músicas de ontem e de hoje, interpretadas por cantores de várias gerações. 
     9. Com a sutileza de uma borboleta, vou pousando nas minhas estantes e reencontrando escritores que há muito não via. É, Sem dúvida, uma satisfação enorme reencontrá-los e reler seus maravilhosos textos.
          Frei Betto tem razão quando afirma que "O bom texto é aquele que deixa saudade na boca da alma. Vontade de lê-lo de novo". 
          Nessa quarentena, estou relendo os escritores Leandro Karnal, Mario Sergio Cortella e o "Diário da Noite Iluminada", do saudoso Josué Montello. 
     10. Entre uma leitura e outra, entre uma música e outra, entre uma lauda escrita e outra, dou um pulinho na cozinha e com a pretensa habilidade de um Master Chef, faço o meu sanduiche. 
     11. Assim, amigo, assim amiga, sem estresse, sem xingar ninguém e sem me maldizer, vou atravessando quase sem sentir, esse isolamento tão questionado mas tão necessário.           Indispensável, até, 
      
           
          
 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 20/04/2020
Reeditado em 20/04/2020
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