YAN, O RUSSO BRANCO
YAN, O RUSSO BRANCO
Sou totalmente interessado nas pessoas que trabalham comigo, procuro saber se estão contentes com o trabalho, quais são seus interesses, sua história de vida, habilidades, etc. Em 1974 eu trabalhava na Ecisa, empresa carioca, na época era uma das dez maiores construtoras do Brasil. Normalmente grandes obras exigem grandes estruturas administrativas para atender a execução dos trabalhos. Um dos serviços terceirizados é o transporte de pessoal administrativo, que normalmente era feito por Kombis cujos proprietários dirigiam e acabavam por serem tratados como nossos funcionário. Ao longo de minha vida contratei muitos e muitos “perueiros”. Alguns ficam nas lembranças e o “seu” Yan foi um desses personagens inesquecíveis. Com seu sotaque russo, Yan era disciplinado e atendia a todos, desde que autorizado por superiores. Utilizando seus serviços para me transportar, fui, aos poucos, conhecendo sua história. Yan era nascido na Bielorrússia, hoje Belarus, dizia ser “russo branco” como eram chamados seus conterrâneos. A Bielorrussia pertencia à URSS, foi devastada pelos alemães na Segunda Guerra e um terço de sua população foi aniquilada. Seu Yan morava em pequena vila e, no início da guerra foi convocado com apenas 14 anos para a frente de batalhas. No terceiro dia foi feito prisioneiro, e permaneceu em um campo de prisioneiros por quatro anos. Relatou-me como foi sua vida de prisioneiros de guerra. No início ficava todos os dias no interior do campo e os soldados alemães não eram chegados à cortesia e tratavam os prisioneiros da pior maneira possível. A Terceira Convenção de Genebra fixa os limites do tratamento geral de prisioneiros, como:
• Obrigação de tratar os prisioneiros humanamente, sendo a tortura e quaisquer atos de pressão física ou psicológica proibidos.
• Obrigações sanitárias, seja ao nível da higiene ou da alimentação.
• Respeito da religião dos prisioneiros.
Era tudo que os alemães não faziam, torturavam, os alojamentos eram inumanos, e, para que os presos não morressem de fome, a alimentação era só ervilha. Detalhe: ervilha no pé! Para comer o camarada tinha que colher os bagos, arrumar um utensílio para cozinhá-los, fazer uma pequena fogueira e, sem tempero algum, comer a gororoba. Muitos comiam as ervilhas cruas e grande parte morria de diarreia ou desnutrição. Yan percebeu que todas as manhãs saiam caminhões com prisioneiros e retornavam ao final das tardes. Informou-se e soube que eram veículos com a missão de coletar os soldados alemães mortos nos fronts. Era o privilégio que muitos prisioneiros buscavam. Como era forte e sadio, Yan foi convocado para essa tarefa e isso foi o que melhorou sua vida de prisioneiro. Passou a integrar uma das equipes de busca aos mortos no campo de batalha. Normalmente os soldados alemães levavam consigo alguma comida e, ao resgatar os cadáveres os prisioneiros revistavam-os e apanhavam caso havia algo comestível. Uma batata, uma ração militar, uma cebola, um resto de pão eram preciosidades e alimentavam várias pessoas. Sopa com uma batata para seis ou sete era normal. Foi prisioneiro de junho de1941 a agosto 1944, exatamente por um período de três anos. Libertado, passou um período em recuperação psicológica e física. Integrado ao exército russo, que havia reconquistado o seu país, voltou a lutar contra os alemães. Em uma licença foi à sua vila e descobriu que sua cidade não existia mais. Os nazistas haviam destruído mais de cinco mil cidades bielorrussas e, no total a guerra acabara com mais de nove mil localidades. Yan descobriu que todos seus parentes estavam mortos. Voltou ao front. Ao término da guerra, no final de 1945, os exércitos aliados ofereciam transporte a qualquer lugar do mundo para os soldados já dispensados. Sem cidade e sem família, Yan ouvira falar do Uruguai que escolheu como o país em que reconstruiria sua vida. Mas o navio aportou em Santos, antes de chegar ao destino de Yan. Encantou-se pela cidade e resolveu ficar na cidade. Construiu família e, já com uns sessenta anos, aposentado, trabalhava com sua Kombi. Era época do regime militar e até hoje escuto sua voz:”Brasilieiro nun saber regimen militar. Brasil cada um faz que quer. Regimen militar non ser assim”. Que Deus o tenha seu Yan. Com essa história de vida, merece uma vida melhor em outro plano. Qualquer dia falarei do sr. Cardoso.
Paulo Miorim 20/04/2020