O Cãocioneiro - O nascimento (capítulo 1)
Nasci no ano de 1977, em uma tapera de propriedade de Seô Chico e Siá Maria Preta.
Minha mãe chamava-se Canela, e era cadela sofrida, separada da minha avó Curianga, inda no peito, pois a dona não tinha condições de sustentar tanta cachorrada. Meus tios, dois, nunca conheci nem soube os nomes, pois foram para outras rancharias.
Siá Maria vivia infamando minha mãe, toda vez que aparecia nas redondezas algum cão andarengo. Isso porque eu mesmo era de um nascimento bastardo:
Foi por volta do inverno, que apareceu na região um cão donairoso, que viajava com um criador de região vizinha. Ele era, nas palavras de minha mãe, o cão mais formoso que andou nesse sertão. Seu nome era Alemão. Pelos castanhos claros, porte altivo, olhar confiante e corajoso. Conheço de foto, pois Siá Maria ostenta um quadro com uma foto do casamento da filha Dinorá com o filho desse fazendeiro na parede da sala. Na foto, em frente a capela da vila, estava lá, meu pai aos pés do alazão montado pelo criador.
Mas, o destino muitas vezes faz maldades. E com minha mãe não foi diferente. Alemão e Canela tiveram uma noite de amor durante a festa de casamento. Atrás da cerca, meu pai tirou não só a castidade de minha mãe, como toda a felicidade. Ele prometera que a levaria para a fazenda do seu dono, e que lá viveriam felizes. Ingenuidade de minha mãe, pois um cão raramente pode guiar seu destino.
Alemão partiu com a comitiva dois dias depois, enquanto minha mãe era amarrada na coleira para que não partisse com eles. Aos ganidos, ela viu partir meu pai, sem sequer olhar para trás, e deixando nela, a semente da união fornicária. Eu nasci, 63 dias depois junto com mais três cachorrinhos em um parto difícil realizado por Siá Maria, que pragueijava tanto quanto um marinheiro bêbado.
Um dos meus irmãos, alheio aos esforços de Siá Maria, não vingou. Ficamos eu e meus dois irmãos enrolados em trapos no chão do galinheiro, sendo amamentados por minha mãe que respirava com dificuldade. Até hoje lembro das palavras de Siá Maria quando saiu do galinheiro para casa:
- Sastifeita, cadela dos diabo? Amanhã dou fim nessas praga. Tem condição de ter mais cachorro aqui não!
Assim era o destino da vida canina naquele pedaço de chão no semiárido nordestino. As mães eram separadas de suas crias antes mesmo de desmamar.
Os dias seguintes foram de tristeza e dor.
Primeiro levaram o meu irmão malhado. Minha mãe seguia a mulher que o segurava nas mãos enrolado em uma toalha velha, e vinha no nosso abrigo cheirar e nos olhar. Depois voltava para perto da mulher e gania chorosa. Era de cortar na alma a frieza de Siá Maria e da mulher, conversando sobre coisas humanas enquanto minha mãe tentava lhes fazer entender que queria seu filho de volta. A mulher partiu e Siá Maria acertou um cabo de vassoura nas costas de minha mãe gritando com ela para que voltasse para o galinheiro.
Na tarde seguinte um senhor bondoso com uma menina bonita, com cabelos separados em duas tranças, e olhos de coruja, foram se chegando e olhando para meu irmão e eu. A menina falou para o pai que queria o marronzinho. Siá Maria pegou meu irmão sem se importar com o desespero de minha mãe e enrolou em outra toalha e deu nas mãos do homem.
Minha mãe ficou desolada. Ela permanecia o tempo todo deitada ao meu lado, talvez na esperança de que não me levassem, ou de que poderia evitar minha partida se não saísse de perto de mim.
Eu mamava e tremia. Não de frio, pois lá o calor era sempre insuportável, mas de medo de ser levado por alguém e ser separado de minha mãe.
Mas foi naquela tardinha, que Seô Chico chegando da lavoura e sentando no velho banco de madeira perto da porta da casa, falou para Siá Maria:
- Vamo fica com o amarelo. A Canela já tá véia e vai que esse presta de cuidar ao menos o galinheiro.
- Pode ser. - Siá Maria respondeu.
Para minha alegria, fiquei.
Foram dias de alegria. Aos poucos fui conhecendo a propriedade. Uma égua, as galinhas, uma cabra que vez ou outra nos dava um carreirão, e por isso passava a maior parte do tempo amarrada e isolada. As árvores, os pássaros, a horta, a casa, o galinheiro que era dividido com as galinhas. Foram dias de muita felicidade.
Mas, alegria de cão dura pouco. Um dia, nervosa por causa de falta de colheita e leite, Siá Maria varria o terreiro e deu uma vassourada nos quartos de minha mãe, gritando raivosa:
- Sai, cadela! Trapaia não!
A pancada foi mais forte do que Siá Maria pensava, pois depois disso, minha mãe passou a ficar amuada e passava muito tempo deitada debaixo da goiabeira. As vezes gemia baixinho quando se virava. Parou de comer, e bebia pouca água. Quando Siá Maria notou que ela obrava sangue, foi tarde demais.
Seô Chico fez ela tomar barbatimão, mas não funcionou. Ela foi ficando mais e mais fraca. Sem comer, gemia quando Siá Maria forçava ela engolir uma pasta amassada de arroz, e a fazia beber água a força. Vez ou outra, ela aceitava um pouco de leite que lambia com olhar cheio de lágrimas.
Aquilo foi piorando até que minha mãe morreu nos braços de Siá Maria, que chorava amargamente. Ela sabia que tinha sido a culpada pela morte de minha mãe, e seu choro era sincero.
Não havia maldade em Siá Maria, não a ponto de judiar de um animal. Mas o sertão endurece a pessoa, sabe? O humano por vezes não suporta viver em uma miséria tão grande, sem ter condições de mudar a situação. Vendo as coisas morrendo e se acabando aos poucos à sua volta. Muitas vezes o humano explode, e desconta a raiva no que vê pela frente. E naquele dia, Siá Maria viu pela frente minha mãe Canela.
Ela foi enterrada no fundo da propriedade, perto da casinha onde os humanos faziam suas necessidades.
Então, me vi sozinho no mundo.
O pai, não conheci. Os irmãos me levaram, e a mãe, minha companheira desde o nascimento, perdi pelas mãos de Siá Maria.
Siá Maria, que depois disso, me tratava com muito mais carinho. Talvez o remorso.
Seô Chico as vezes me levava com ele no mato para caçar, mas eu não gostava de ver outro bicho morrer. Aquilo me fazia lembrar da minha mãe e me doía. Logo Seô Chico percebeu que naquilo eu não tinha serventia.
Ele, aliás, dizia que eu não tinha era serventia nenhuma. E que prestava apenas pra latir a noite para o nada.
Foi ele que me colocou o nome de Cãocineiro.