CRÔNICA DE QUARENTENA

    É domingo. A primeira coisa que faço todos os dias — e domingo não é diferente— é subir no banquinho que calça a porta da cozinha. Então subo nele — porque a janela é alta e eu, bem, eu sou bem baixinha—para ver o mundo lá fora. Gosto de olhar primeiro o pé de jabuticaba no quintal do vizinho porque adoro ver os pardais pousando em seus galhos. São tantos. Hoje não tinha muitos, pois estava chovendo levemente e creio que preferiram o calor de seus ninhos. Gosto também de olhar a jabuticabeira porque ela me conta se está ventando ou não. É tão incrível ver os galhos balançando leves ou afoitos. Adoro o vento, adoro, adoro...
    Bem, nessa tela quase sempre igual, vejo muitas coisas além dos pardais e da jabuticabeira. Tem o bosque lá longe no limite da cidade. Parece denso, mas não sei. De longe é difícil saber. Mas eu sempre tive vontade de ir lá. Mas acho que deve ser perigoso. Fosse na Fazenda de meu pai eu não teria medo. Aliás tenho tantos medos bobos.
    Bem ao lado do bosque tem a lavoura. Há poucos dias estavam plantando e agora já chegou a colheita. Há sempre colheitas para quem planta. E não só com relação a alimentos. Há muitos tipos de colheitas porque há muitas formas de semear, muitos tipos de sementes... Eu sei porque já colhi muitas coisas que plantei ao longo de minha vida com meus atos.  E nesse sentido, às vezes os frutos são bem amargos. Como, talvez, os que estamos colhendo hoje com essa pandemia que assola o mundo. Enfim...
    Mas com relação à lavoura ao lado do bosque, só hoje descobri que era de milho porque já colheram a metade e deu para enxergar as hastes altas. É uma cena tão linda! Mas o mais lindo é saber que fartarão as mesas. No caso dessa lavoura, desconfio que é para encher silos, uma espécie de reservatório de alimento para o gado nos períodos de estiagem, porque estão colhendo com as hastes ainda verdes. Eu sei disso porque já vivi na roça e sei dessas coisas.
    Ainda da minha janela posso ver a rodovia que faz a curva bem junto à lavoura. Quando vou à fazenda de meu pai, passo por lá. Quando tem neblina de manhã ela desaparece. Hoje tinha um pouco de neblina e não deu para enxergar a imagem do Cristo Redentor que fica bem na curva. Apesar disso, gosto quando tem neblina. Parece mágico aquela brancura como um véu descendo do céu.
    No mais o que vejo de minha janela são os telhados das casas inertes no tempo e no espaço, com exceção de um telhado bem abaixo da minha janela onde tem uma chaminé, o que me leva a ter certeza que lá tem um fogão de lenhas, e fico imaginando a lenha queimando deixando um calor de aconchego nesse friozinho de outono. Fico imaginando, ou melhor, relembrando minha infância. Fogão de lenhas tem ligação forte com infância. Pelo menos com a minha tem. Ah! Como tem!
    Mas hoje, quando olhei pela janela já havia fumaça saindo pela chaminé da casa do vizinho e quase pude adivinhar o café fervendo numa velha caçarola preta como são todas as panelas que vão ao fogão de lenhas. Eu sei porque vivi em minha infância coisas desse tipo. Como vivi. Interessante em plena cidade uma chaminé...
    Enfim desci do banquinho depois de agradecer a Deus por tudo. Inclusive as lembranças perfeitas. Eram quase seis e meia e eu precisava fazer meu café. No fogão a gás. Precisava me apressar, pois logo a missa ia começar. Levanto bem cedo aos domingos por causa da missa. É sagrado para mim. Em tempos de quarentena por causa do coronavirus as missas estão sendo transmitidas via Facebook, Instragam, Youtube e Rádio.  Sinto falta da missa na Matriz de Sant’Ana, da correria para chegar a tempo de encontrar um lugar para estacionar o fusca de forma que facilite a locomoção de meu esposo que não anda sozinho, mas que não abre mão de rezar a missa dominical. Alegro-me com sua atitude, depois de tantas rebeldias que fez ao longo da vida ao ponto de chegar ao que chegou de não poder andar mais sozinho.  
    Agora em quarentena procuro mais que nunca rezar com fé e devoção e, por isso, enquanto o café fervia já fui ligando meu Notebook e acessando o facebook. Tomei café as pressas com biscoito de polvilho e rosquinhas; passei creme cicatricure no rosto e delineador nos olhos; coloquei brincos nude combinando com meu vestido godê duplo estampado de flores nude sobre um campo azul bem claro. O vestido, eu mesma quem fiz depois que me aposentei de trinta e três anos de trabalho numa mesma empresa e inventei de voltar a costurar depois de trinta anos.
    Finalmente calcei uma rasteirinha enfeitada com pérolas que abandonei há um tempo por machucarem entre meu dedão do pé e o outro ao lado. Mas tudo bem, eu não ia andar com ela e, depois, não queria assistir a missa com chinelos havaiana. Vamos combinar: não ia pegar bem com meu vestido de crepe bubbe, embora simples. Missa para mim é sagrado e preciso ficar bem diante de Deus. Na verdade, Deus não se importa com essas coisas, pois infinita é sua misericórdia e Ele quer na verdade é nossa simplicidade, especialmente de coração.
    E falando em misericórdia, hoje se comemora a Divina Misericórdia de Jesus Cristo para conosco, o dia em que ao aparecer para seus apóstolos, após sua ressurreição, os encontrou tristes, com medo e sem esperanças e soprou sobre eles o Espírito Santo para que ganhassem força e seguissem a vida. O Evangelho vem representar bem nossa situação diante dessa pandemia: medo, tristeza, desesperança... Mas Jesus vem nos desejar a paz e dizer que precisamos confiar Nele e tentar ser melhores.
    Na missa que assisti via facebook, o padre, em sua homilia, nos disse que “só conseguimos obter a misericórdia de Deus quando reconheço minhas faltas e tento mudar”. Falou ainda que “só podemos experimentar o amor de Deus quando voltamos para casa como fez o filho pródigo”. Foi uma missa linda que trouxe mais esperanças de dias melhores nessa situação que estamos passando com relação à pandemia do coronavirus. Estamos sitiados como numa guerra. O coronavirus, esse inimigo invisível vai deixando um rastro de destruição por onde passa como a força de uma metralhadora. Mas eu sei que, nada fica indefinido para sempre. Um dia tudo isso vai passar e quando passar que sejamos pessoas melhores. É isso que Deus quer de nós, pois, o mundo atual está cansado de desigualdades, de politicagens. A natureza está cansada de ser machucada. E tantas outras coisas.
    Que essa quarentena seja o nosso “deserto”. O deserto onde encontramos Deus, pois só a graça de Deus nos basta.

 



IMAGEM: Eu hoje arrumada para a missa via Facebook.