O vírus e os vizinhos
Há um caso do vírus no condomínio. Foi o síndico quem avisou, pedindo que redobrássemos os cuidados e evitássemos as áreas de uso comum. Ele ainda garantiu que as medidas de higienização nos prédios seriam reforçadas. Disse mais uma porção de coisas, só não disse o nome do infeliz que trouxera, sem querer, a morte para mais perto de nós. Claro, é compreensível, a lei está do lado do contaminado, e o próprio senso comum também está, pois, nos dias que correm, é de se imaginar que ele e a sua família sofreriam todo tipo de represálias caso soubéssemos que foram eles a disseminar o vírus aqui por perto. Melhor, então, que não saibamos quem tenha sido.
Nem por isso, no entanto, deixo de fazer as minhas conjecturas. Pelas minhas contas, vivem no condomínio cerca de 1.500 pessoas. Trata-se de uma pequena cidade. Sei que não sou eu o contaminado e tampouco a minha mãe. Penso nos meus vizinhos. O da porta em frente saiu de casa hoje cedo. Se fosse ele, não teria saído de casa (teria?). A mulher dele está fazendo o almoço, posso escutar a sua panela de pressão. Também não pode ser ela. Eu imagino que a pessoa com o vírus fique isolada no seu quarto, de preferência deitada na cama e sem ver ninguém.
É um alívio saber que o vírus não está aqui em frente, mas talvez ainda esteja por perto. Acaso estará no apartamento acima do nosso? Lá vive uma família cristã, mas já vai longe o tempo em que as famílias cristãs se preocupavam em amar o próximo, de modo que não há nenhuma contradição em ser também essa a família mais barulhenta do prédio. Há dois capetinhas que todas as noites fazem uma barulheira dos infernos, e mais de uma vez dirigi mentalmente aos pais deles palavras nem um pouco lisonjeiras, além de expressar desejos de coisas nada agradáveis – será que o vírus apareceu lá de tanto eu desejar coisas ruins para a família? Não, acho que não, escuto os diabinhos correndo como sempre.
Talvez tenha sido na casa daquele vizinho de mal com a vida. Sempre que se escuta uma gritaria qualquer, é grande a chance de ser na casa dele, pois o sujeito faz questão de expressar à esposa e aos seus filhos o seu grande desagrado por ter que conviver com pessoas tão estúpidas quanto eles. Estou certo que aquelas crianças ali temem mais o pai do que o vírus. Seria justo se o vírus aparecesse ali, mas já está claro que o vírus não está preocupado com justiça.
Quem sabe o infectado seja aquele senhor que passeia por aí com seus cachorros tão pequenos quanto estressados, que não admitem ver qualquer pessoa pela frente e tratam de avançar sobre ela tão logo a avistam. O homem chama os cachorros para que voltem a ele e deixem em paz as pessoas, mas ele chama mais para manter as aparências, pois é uma coisa certa que os cachorros não irão obedecer. Até hoje, não se sabe o que seja coleira naquela casa. E se o vírus tiver resolvido fazer a sua morada por lá?
Falo desses casos de vizinhos problemáticos, mas há outros de quem não me agradaria nada saber que foram contaminados pelo vírus. Por exemplo, a menina que pegava ônibus comigo todos os dias às sete da manhã no ano passado. Não pude evitar que ela fosse uma das minhas paixões platônicas. Nunca mais a vi desde então, mas odiaria voltar a saber dela por meio de uma notícia de que foi contaminada. Ela é jovem, eu sei, mas o vírus anda pegando muita gente da minha faixa etária também. Ah, eu teria um gesto heroico e romântico, tiraria o vírus dela à força e me contaminaria de bom grado para salvá-la.
Há também uma mulher que às vezes posso escutar tocando músicas sacras em um órgão. Essa já está mais perto do céu que todos nós, mas também não me agradaria que ela estivesse com o vírus. Tem também um homem que há alguns anos levou um tiro no pé e ainda hoje caminha com dificuldade. A vida muitas vezes parece escolher algumas pessoas a fim de que suportem mais dramas que os demais – será possível que também o vírus foi a ele destinado? Tem ainda um senhorzinho bem simpático que um dia eu encontrei no portão, não sei onde ele mora, nunca mais o vi, mas sei que é do grupo de risco. E a mulher que fala tão alto que todo mundo consegue escutar as suas conversas? Não, essa eu ainda escuto.
A verdade é que também não são muito mais do que esses os vizinhos que eu conheço, ainda que sejam 1.500 os que moram por aqui. Provavelmente, quem pegou o vírus é alguém por quem eu já passei um dia, mas não dei atenção, sequer cheguei a olhar na sua direção, porque aqui é Curitiba e, mesmo se não fosse, o meu próprio temperamento me levaria a isso. Já estávamos isolados bem antes da quarentena.