O CHAVEIRO DO CARRO DE MEU PAI

O CHAVEIRO DO CARRO DE MEU PAI

Após obter a “Carta de Motorista”, como chamávamos antigamente (é duro ser de antigamente, mas fazer o quê?) a Carteira Nacional de Habilitação, eu, em poucas ocasiões, era autorizado a dirigir a maravilhosa Vemaguete de meu pai. Para quem nem imagina o que pode ser uma Vemaguete, explico: era a perua ou pequena van fabricada pela DKW, uma montadora alemã cujas instalações industriais situavam-se em São Bernardo do Campo, São Paulo e disputava com a Volkswagen a liderança do mercado automobilístico nacional. Se atualmente obter a CNH é um sonho de todo adolescente, há cinquenta anos atrás era uma conquista maravilhosa. A etapa seguinte, após portar o precioso documento, era mais difícil: conseguir autorização de meu pai para dirigir seu (dele) carro. Poucas famílias tinham automóveis e emprestá-los para filhos era coisa que os pais nem sempre faziam. Aos poucos, apesar de algumas bobagens inerentes à minha pouca experiência, conquistei a confiança de meu pai e saía constantemente com a belíssima Vemaguete com pintura então chamada saia e blusa nas cores bordô e teto branco. Hoje me parece lembranças antediluvianas, mas interessantes. Os carros da DKW possuíam motor de dois tempos ao invés da maioria que eram de quatro tempos, no abastecimento o óleo lubrificante era adicionado ao combustível, o ronco do motor era uma característica da marca. Aliás, é um som que permanece vivo em minhas lembranças como se fosse agora, para usar um jargão popular. O uso da Vemaguete ampliou muito nossas atividades. Eu, Sérgio Heleno, Di Renzo e o Gregório Stipanich (que tinha uma Rural Willys), íamos surfar no Guarujá, levar a prancha que serviria de modelo para a Glaspac e, evidente, paquerar de carro era outro nível. Algumas ocasiões passei alguns perrengues, mas todos sem que meu pai soubesse. Apesar de ser maravilhoso, meu pai era exigente e bom motorista, o que pesava na minha responsabilidade para com a Vemaguete. O chaveiro da perua, objeto de meus desejos, diariamente era uma conquista. Ficava no bolso do Capitão Miorim e convence-lo a me entregar o chaveiro, uma exposição de motivos e compromisso de tomar muito cuidado. Era um chaveiro hoje considerado simples, mas na época eu achava o máximo. Era uma pequena placa de acrílico da Esso, antiga distribuidora de combustível, ligada por uma corrente bonita à argola das chaves, apenas isso. Nessa pequena placa, estampado o símbolo da Esso, um tigre sorridente. Eu sabia o significado do chaveiro e tomava muito cuidado com o mesmo. Eu e Sérgio Heleno saíamos juntos e, certa noite em uma conversa com um grupo de amigos nos jardins do maravilhoso Parque Balneário (destruído anos depois por vorazes empresários), inadvertidamente quebrei a placa da Esso ao manusear o chaveiro. Tomado de pânico e sem saber o que fazer, não entreguei o chaveiro ao meu pai ao chegar em casa, precisava de arrumar uma explicação. Minha família morava em um sobrado na esquina da Avenida Capitão Mór Aguiar com a Rua Marquês de São Vicente, onde meu pai tinha um armazém de “secos e molhados” (até hoje não entendo a razão de se classificar assim um tipo de mercadinho). O meu quarto ficava sobre o armazém, era bem amplo, após o casamento de meu irmão tornei-me único morador do aposento. O acesso se dava por uma pequena escada de madeira com degraus já gastos e requeria cuidados ao utilizá-la. Falei ao Sérgio que iria simular uma queda e em consequência o chaveiro havia quebrado. Subi ao quarto e Sérgio ficou me aguardando na sala. Com o chaveiro na mão aproximei-me da escada e, ao iniciar a descida, realmente escorreguei nos degraus, cai e fui descendo a escada deitado, sentindo cada um dos degraus bater em minhas costas. Aterrissei com a bunda no chão. Minha mãe ao escutar o barulhão correu desesperada para me socorrer. Falei que havia quebrado o chaveiro e Dona Zeny brigou dizendo que o importante era meus machucados e o chaveiro não interessava. Me levantei cheio de dores pelo corpo, mas aliviado por causa do chaveiro. Após passar mertiolate, na época ardia muito, nos cortes e trocar de camisa, saímos. Ao entrarmos na Vemaguete, Sérgio Heleno perguntou: “- Você não acha que exagerou na queda?” Contei que realmente havia caído e rimos muito.

Paulo Miorim 18/04/2020

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 18/04/2020
Reeditado em 21/06/2020
Código do texto: T6920954
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