Novos tempos
Hoje acordei com o estalido enxuto e ligeiro de uma cigarra. Essa cantante cigarra, entoando um som breve e seco, veio do alto da madrugada me avisar que, em dia e hora marcados, vai realizar, no Instagram, uma "live'' para seus fãs. Disse que está se adaptando aos novos tempos, às restrições impostas pelo governo às aglomerações e que, mesmo em época de crise, é preciso sobreviver. Não se delongou em pormenores nem quis saber se eu curtia seu som nem se, pelo menos, tinha Instagram. Saiu apressadamente, com seu estalido enxuto e ligeiro, acordando a noite.
Fiquei embasbacado com a novidade, em saber que atualmente, em função da crise provocada pelo coronavírus, até cigarra está se ajustando aos novos tempos, às "lives". Pensava que essa moda de promover shows ao vivo dizia respeito apenas ao mundo dos homens vivos; não se aplicava ao reino das cigarras cantantes.
Contudo, não apenas as cigarras estão se ajustando à Nova Era. Nós, os bípedes, estamos encabeçando essa Nova Era que se aproxima: a Era de tirar os sapatos antes de entrar em casa, de lavar as mãos incontáveis vezes ao dia, das compras pela internet, das lives, dos deliverys, do home office, da academia de ginástica domiciliar, dos cumprimentos sem aperto de mão, da comunicação por figurinhas, do asséptico sexo virtual.
Essa constatação é reveladora. Significa admitir que o mundo, como o conhecíamos até ontem —com suas multidões mutilando o espaço, os antissépticos apertos de mão e beijos na bochecha, o trabalho fora do domicílio etc.—está com dias contados. O coronavirus é uma realidade que está aí, aqui, acolá, preenchendo os quatro cantos do continente, para nos matar ou nos acordar para a realidade de que precisamos repensar nosso modo de consumo e de vida; redefinir nossas atividades de lazer, cultura, gastronomia, entretenimento.
O governo argentino, ao recomendar, durante a pandemia do coronavírus, sexo virtual e masturbação aos seus cidadãos solteiros, deu exemplo do que nos espera. Quando voltarmos à normalidade, é possível que ela não seja mais a mesma. Não estranhe se, quando chegar a um bar, um cliente, antes de pedir uma bebida, pedir álcool em gel para higienizar as mãos; se, ao cumprimentar alguém com o de praxe estirar da mão, ele lhe pergunte se a sua mão está limpa; não estranhe se, ao frequentar espaço público deparar com pessoas usando máscaras; estranhe se não estiverem usando; não entranhe se os shows ao vivo e em espaço público forem substituídos por lives.
Se sairmos vivos da ''guerra'' contra o coronavírus, o mundo, o progresso, o trânsito, os espaços públicos, a morte terão outra aparência. Se mais sombria que a de ontem, não sei dizer. Não estranhe, contudo, se a resposta for sim. Parece-me inegável que os sobreviventes do coronavírus serão os eleitos da Nova Era. A Era do delivery, das compras pela internet, das lives, do trabalho remoto, da educação a distância, do Whats, do Insta, da comunicação por figurinhas, dos jogos sem torcida, do sexo virtual.
Quando o coronavírus baixar a bola, talvez a normalidade, assim como as torcidas nos campos de futebol, não esteja presente. Não estranhe se ela estiver ausente, adaptando-se aos novos tempos, ensaiando sua própria live, praticando amor virtual, trabalhando remotamente, higienizando as mãos, malhando em casa...
Não estranhe, por fim, se ela estiver morta.