Memórias
Bateu uma vontade louca e alucinada de estar no sítio de meu avô Fausto, pai de minha mãe, e revivi em minutos nossos momentos de neta e avô. Filho de espanhol e português, comerciante, elegante e bonito. Dom Fausto era um lorde; só vestia roupa social e usava um chapéu charmoso.
Tinha dois vícios inseparáveis: a branquinha e o cachimbo; a branquinha partiu o fígado dele, em janeiro de 1993. Dono de uma voz rouca, personalidade forte e mãos frouxas; a bondade em pessoa. Colecionava amigos, colegas, vizinhos e conhecidos; era amado e respeitado por todos.
Dom Fausto, do reino das Águas Claras gostava de contar-nos histórias; era devoto de nossa senhora, e dizia que sabia uma reza contra a morte. Acho, que no dia 23, daquele ano, ele esqueceu a oração, e a morte aproveitou a ocasião. A maldita levou consigo meu avô querido e rasgou meu coração.
Nunca tinha passado por isso, uma dor no peito sem explicação. Foi-se embora o homem mais honrado que viveu ao meu lado, de lá pra cá, deixa pra lá. Dom Fausto falava que minhas mãos eram generosas, chamava-me de princesa e me amava muito. Não cansava de elogiar-me e achava que meu coração era de ouro.
Eu, desde menina roubava gêneros alimentícios, da dispensa de minha mãe, para dar ao meu avô ou a quem chegasse pedindo. Achava que lá em casa tinha muito. Herdei as mãos dele. O sítio era muito lindo, meu pedaço de paraíso e céu particular. Tantos pés de frutas! Goiabeira, mangueira, bananeira, abiuzeiro, jaqueira, cajazeira, jambeiro, abacateiro, coqueiro, limoeiro, laranjeira, dentre outras.
A cigarra cantando, os micos gritando, os pássaros dançando, o beija-flor paquerando, as borboletas desfilando, as formigas enfurecidas, as lagartas transformistas; eu tinha um reino encantado e não sabia. Vivia no meio das árvores, escalava todas que queria. Era chamada de moleque-macho, nada temia.
Coletora de frutos e caçadora de aventura; todos os dias eu encontrava a felicidade; éramos íntimas. Pela manhã ia para a fonte, uma nascente de água doce que ficava no quintal; lavava roupas, carregava água e colhia as frutas. Naquela época não tinha problemas ajudar nas tarefas domésticas; o trabalho escravo infantil estava no berço da OIT; enquanto isso, eu era a criança mais feliz.
A única menina que vivia abastarda sem ser fada ou princesa. Naquele tempo, eu ouvia os sons da natureza; das folhas secas do abacateiro, das serestas das corujas o ano inteiro; e de todos os animais. Apaixonada pelas flores, sentia uma conexão com os pés de ipês, pau-brasil, flamboyants e Jasmim; as orquídeas despertavam em mim a beleza, e o lírio tinha um cantinho do meu olhar.
Mas ainda vejo a garotinha sonhadora e forte percorrendo o sítio todos os dias; brincando com os irmãos; desvendando a vida sem pensar em perigo e traições. Ela era inocente, divertida e sorria à toa. Colecionava até papéis de cartas! Tinha um diário secreto com poesias e pensamentos; acredito que abusou da felicidade.