Julhos e agostos passados

É fora de hora! Estamos na quarentena, há vários dias com ruas meio vazias, meio silenciosas, as pessoas conversando por seus celulares ou por cima de seus muros. Isso ainda tem um peso acrescido das nuvens esbranquiçadas, que cobrem o céu como um tapete de veludo fofo.

Como é outono, pouco escutamos dos pássaros. Mas hoje a rua se encheu de passarinhos. Acho que a molecada ficou enlouquecida em casa, e os pais de paciência já esgotada a deixaram sair. Foi uma gritaria dos garotos chamando aos portões. O céu começou a ter companhia de ilustres pipas coloridas, avolumadas de compridas rabiolas e pelo plano de fundo enuvecido.

Apesar de questionar comigo mesmo o bom senso dos pais, uma criança imortalizada dentro de mim dizia para eu adulto não me meter, que era um pouco de brincadeira e alegria para o bairro; ainda rezou zanga de que até ela iria se pudesse, mas eu adulto sou muito chato e careta. O que me aconteceu?, ela me questionava, deixando um eco que vibraria por horas no meu pensamento.

Parece até que é julho ou agosto, eu pensava vendo a molecada solando pipa e subindo morro. Os gritos de escárnio sequencialmente conhecidos: primeiro é o provocativo “arrasta aqui”, duvidando da coragem dos outros moleques em arriscarem suas voantes pipas; quando alguma pipa avoa – isso mesmo, avoa – um uníssono “foi no dedo, chei’de linha” escreve nos ares o deboche com quem perdeu a pipa. O resto dos meninos sai correndo avisando “avoada... avoada...” enquanto quem ainda tem pipa grita “boca aberta”. É uma sequência quase religiosa, novos gritos até surgem, mas esses velhos sempre se conservam, mesmo com uma ou outra briga.

Questionei o riso da minha mãe, que me encarava com diversão. “Você fala exatamente a mesma coisa que os meninos estão gritando na rua”, ela respondeu. Eu não havia percebido, deve ter sido a minha criança, correndo na minha cabeça atrás do meu pensamento de pipa, imaginei. Minha mãe se achegou, me deu um beijo no rosto e disse: se ainda tivesse a idade deles, você estaria na rua com eles agora, eu deixaria.

Crônicas de um Ignorante e Trotes do Pequeno Grilo
Enviado por Crônicas de um Ignorante em 15/04/2020
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