ELA
Acordo: será que ela ainda me ama? Não devia ter bebido tanto na noite anterior, quase não me lembro de nada. Que gosto insuportável de cigarro, amargor que emana de uma fonte de alcatrão e mais algumas dezenas de substâncias carcinogênicas. Quero fumar. O cigarro encontra-se distante. Meu corpo não responde aos languidos impulsos conscientes. Minha cabeça pesa. Procuro o celular, desejo saber as horas. Sete horas. Embora tenha dormido, ainda estou bêbado. Será que ela me ama ainda?
Sinto um peso insuportável, como se um demônio, sentado em minhas costas, zombasse de toda aquela realidade que me cerca, mereço permanecer nesse entremeio: realidade e sonho, o telúrico ardor em combate com o frescor de apenas pôr em marcha ideais, mesmo que ainda desconexas. Onde está meu cigarro? Não tenho força para mexer músculo algum: sou uma mente errante em um vale sombrio. Pensamentos convulsos. Mente pesada. O álcool é um inimigo implacável, quando pensamos que lhe estamos vencendo, sua verdadeira face apresenta-se com toda sua monstruosidade e agarra-nos por dentro, tortura-nos e depois nos joga em uma cama – Deus queira que seja a nossa. Deus? Ontem, lia Santo Agostinho. Estava calor. Eu não acredito em Deus.
Durmo... a escuridão aplaca-me. Barulho de despertador. Toca. Será que ela me ama ainda? Minhas pálpebras estão extremamente pesadas. Me viro. Mexo. Posição fetal. Nada. Durmo novamente.
De repente, salto, preciso vencer o estágio vegetativo que me encontro. Sou biólogo. O que será que minha vó preparará para almoço? Estou com fome. É um absurdo pôr manga na salada; mas o contraste entre o verde e amarelo é de grande beleza. Verde e amarelo. O Brasil encontra-se em um estado deplorável. Há pouco mais de cinquenta anos a ditadura torturou. Ela. Esse pensamento me tortura.
Desperto e com uma força hercúlea começo a mexer-me. Estendo o braço, alcanço um cigarro. O isqueiro, onde está esse maldito? Bolso da calça. Acendo. Trago. Aqueles segundos que levam a fumaça tóxica dos pulmões até a anestesia de nosso sistema nervoso, são preciosos, encerram a sobriedade do dia que se inicia. A realidade é demais, preciso armar-me contra ela. Mais um trago. Corpo leve. As conexões intelectuais vão se entremeando com as faculdades motoras. Vou parar de fumar.
Sento-me à beira da cama, o cachorro deseja ansiosamente um afago, roça-me as pernas e, com um amor animal, acaricia-me muito mais do que eu a ele. Ela. Será que ela ainda me ama? Está distante, não pôde participar da bebedeira de ontem. Chico Buarque tocava em uma potente caixa de som, ela adoraria. Atualmente, a música tornou-se tão simples, assim como as encontrar na internet. Ontem discutimos isso. Alguém se lembrou de João Cabral. Vida Severina. É melhor levantar-me. Mais um trago.
O cachorro está com fome. Encaminho-me para o banheiro. Miro-me no espelho pequeno, que compõe a parva decoração de meu casebre: acho-me belo, os anos fizeram-me bem, mas será que me vejo? Estou ali como eu sou? Naquela pequena superfície argenta cabe-me todo? Lavo o rosto repetidas vezes, a água gelada, ao chocar-se com minha face, dá-me enorme prazer. Infelizmente, estamos todos em país bloqueado. Mundo trancado. Áporo. A orquídea está cinza, não dá mais flor, e sua antieuclidiana forma, hoje, veste máscara e respira com dificuldades.
Um de meus amigos lia, ebriamente, um poema de Manuel Bandeira. Brilham algumas estrelas na noite de minha consciência. Foi o psicólogo, ele mesmo, a morte ocupava a pequena sala e o colóquio nela se mantinha preso. Banquete.... realmente um típico banquete. Sócrates, entregou-se à morte? A sala posta e tudo em seu lugar. O psicólogo falava de Freud. O engenheiro resmungava e deseja demonstrar matematicamente as possibilidades de morrermos. Contaminação. As chances eram poucas. A bebedeira continua. Mais e mais os sentidos faltam e as palavras, sem nenhum guarda, ganhavam velocidades incríveis. Contei sobre alguns livros de antropologia que havia lido há tempo, nada fazia sentido, ninguém se ouvia mais: só queríamos falar. Libertar a pesada angústia do silêncio. Lembrei-me de Augusto dos Anjos, “Assisto agora à morte de um inseto...!”. Seremos, nós, agora, o inseto?
O espelho causa-me uma vertigem horripilante, tenho que me desvencilhar, a vida espera-me. Um pouco mais de água. Estou pronto para tudo. Na travessia até a cozinha, a realidade começa a tomar cada vez mais forma. Uma materialidade dura e seca. O sertão está em todo lugar. Espaços vazios: desabitados. Como se nesses poucos passos, eu fosse apresentado diante de um tribunal implacável: Ecce homo. A materialidade crucifica-me e, sem pena, impõe-se sobre mim; tento desviar-me dela, leio algumas mensagens do celular. Não, ninguém acordou ainda.
Lembro-me de meu tempo em Minas Gerais, acho que sou um pouco mineiro, trago um pouco de sua poeira impregnada em mim: por mais que me lave na indiferença paulista, ainda tenho, em meu sangue, uma porção de caldo de frango ensopado. Levo a leiteira ao fogo, a água logo começará a borbulhar, apreço-me: pego o café; ponho-o no coador; apronto a garrafa e espero. Mais um trago para vencer a ansiedade que precede a ebulição. Aos poucos, armo-me para enfrentar o dia, ergo a espada de fogo e me queimo; mas ela é necessária para suportar tudo. Preciso parar de fumar. A água está pronta – por mais que os especialistas digam ao contrário, aprendi, com uma velha senhora, que café bom é feito com água fervente –, despejo-a sobre o retinto pó, que a abraça maliciosamente e põe-na a dançar em lindos redemoinhos. Enquanto esse deslumbrante balé perfuma toda a casa, ligo o som, que vomita um samba antigo. Perco-me na cadência do surdo, o tamborim marca o tempo, enquanto o violão chora toda sua mágoa sobre mim. O café está pronto.
Verto o licor no copo – isso mesmo no copo, sem cerimônia alguma –, o líquido aquece o copo e este, minhas mãos. Sinto o calor, como o abraço daquela mulher que me mantém vivo no frio glacial da sociedade moderna. Será que me ama ainda? Mais um cigarro para contemplar a incolor paisagem que vejo de minha janela. O café desce quente pela garganta, bate no estômago vazio e o desperta, esse, contudo, é muito mal-humorado pela manhã, nem bem acorda e já começa reclamar. Deve ser o cigarro: preciso parar de fumar.
O velho samba continua irradiar-se pela casa e mistura-se ao aroma ríspido do forte café, ambos sambam como em uma manhã de carnaval. Se meus dias fossem todos assim, seriam fatigantes e insuportáveis, já que não o são, gozo-lhe como se estivesse alheio a tudo: o universo todo é o agora. Só ela que, não estando aqui, é mais presente em sua ausência. A cada gole, sinto-me mais forte e preparado para enfrentar a vida. Estou sempre com sede, parece-me que quando me aproximo do líquido, ele foge de mim, tornando a sede eterna. Tenho sede. Preciso viver. Devo parar de fumar.
A minha prisão é como uma foto 3x4 do todo ao meu entorno; o pequeno portão mostra, somente, um delimitado universo, no qual as formigas trabalham normalmente; os pássaros cantam suas operetas na única árvore em minha calçada; muitos outros seres encontram-se ali, será que o maldito está ali. Será...
Pego um livro, folhei-o e leio alguns curtos poemas. Minha cabeça não está boa. É melhor tomar mais um gole de café e acender mais um cigarro. Desperto. O poema é impactante. Homem. Leite. Sangue. Escrevo poucas linhas. Preciso parar de fumar. Sento-me, preciso estudar: A história da educação. Como é belo o povo helênico. Fênix e Aquiles. Será que ela me ama? Amor, onde ele está? O que é ele? Há amor na vida? Ou a vida é o amor? Lembro-me de ouvir, em algum lugar, que só vive quem ama, em outro, pelo contrário, que amar é negar a vida. Nada sei. Hoje, dia difícil, concentrar-se é esforçar-se inutilmente.
Até então tudo caminhava como somente essa confusão mental fosse minha realidade. O toque do celular me desperta. É o engenheiro:
– Deu positivo. O teste. Estou contaminado. Minha irmã trouxe esse veneno do estrangeiro. Acho melhor você também fazer. Avisarei todos.
Ontem, estávamos todos juntos, bebendo e compartilhando cigarros. Tenho medo. Meus pulmões são fracos, minha imunidade não é boa. Tenho medo. Será que ela me ama?
Um intruso adentrou em meu território sagrado. Introibo ad altare Dei? Ele de novo. Por que me persegues? Cigarro. Como isso pode acontecer? Não segui os protocolos? Me vi preso à revelia de meu desejo? Não há teste. Não há nada. Preciso sair desse ambiente claustrofóbico. Essa fumaça tóxica. Áporo.
Pensamentos loucos consomem-me. Sou um homem perturbado. Melhor é fumar um cigarro e tomar mais um copo de café. Será que ela me ama?