CORONADA - XVII
Dona Hélia tinha o terreiro mais antigo do lugar. Quando nasci ele já estava lá, nunca mudou de endereço. Dona Hélia realizou as festas de Cosme e Damião mais incríveis da nossa infância, com farta distribuição de doces para a gurizada, tanto que, por pura maledicência infantil, nós as chamávamos de Dona Cosma. Dona Hélia era auxiliar de enfermagem até a aposentadoria, mas tinha uma saleta no fundo do quintal que era a escolinha de reforço de português e matemática, onde lecionou até perto dos oitenta anos, sem cobrar nada. As melhores festas juninas da minha infância e adolescência era ela quem organizava.
Nunca soube se foi casada, tinha um filho que depois de adulto se converteu, virou pastor e desde então nunca mais a visitou. Se teve amores ou netos, nunca soubemos. Suas marcas mais visíveis eram as roupas impecavelmente brancas, os turbantes coloridos, os gestos pausados e a voz enfática, calma e baixa. Ah, e o sorriso tímido que era como ouro, um farol.
Dona Hélia dizem ter sido sábia conselheira, que salvou muitos casamentos e tirou dezenas de jovens do caminho torto. Também falam que ainda nos anos 70 e 80 fez muito parto na vila, curou muito moleque com suas ervas, benzimentos e banhos, ensinou noções sanitárias pra quem quis aprender e distribuiu mais cestas básicas que qualquer programa assistencial de governo.
Contam tantas histórias de dona Hélia que este texto parece ficção.
Alguns a chamavam de Nino do Castelo Ra Tim Bum, outros de árvore centenária. Com nossos umbigos encostados no balcão do bar, cada vez que a víamos arrastando o passo pela calçada, pressupúnhamos que o enterro dela seria o mais bem acompanhado do bairro. Até que ontem um bichinho parecido com uma mamona a derrubou, um nocaute. No velório, apenas Véia Zeza, a Dandinha, o Pé-Inchado, uns sete ou oito desconhecidos e eu. No papel da funerária consta que aquele baobá tombou aos 99.