E agora?
Sentado em seu lugar no carro ao lado da irmã mais velha, “ quase uma mocinha” como dizia Vovó Atenalp, Univers olhava pela janela, observava e pensava em como tudo parecia ter voltado ao seu normal. Não via diferença dessa para outras manhãs ao percorrer esse mesmo caminho na companhia do pai e da mãe, calados e atentos ao celular. Era o primeiro dia que saiam depois de ficarem por meses retidos em casa. Apressados, iriam para seus empregos depois de os deixarem na escola.
Seus pensamentos pareciam filmes recentes que brotavam de sua mente e o transportavam para o aconchego agradável da ampla casa em que residia. Jamais teria motivos de queixas. Possuía tudo o que era possível graças ao esforço familiar. Era feliz e agradecido. De uma certa forma vivia em uma redoma de tudo protegido. Desconhecia não ser possível desejar algo. Prontamente era atendido. Gostava. Sentia-se feliz. Tinha amigos ao redor. Sabia que aquela era sua vida e isso o bastava.
Porém, em seguida surgiram outras cenas que tiverem início ao ouvir pela vez primeira uma estranha palavra “ pandemia “. Desconhecia. A sabedoria da vovó Atenalp prontamente o esclareceu. “ Era do grupo de risco”, dissera seu pai. Até hoje não entendeu. Risco? Que risco? Os dias foram se atropelando. Começou a notar algumas alterações. Seus pais estavam sempre em casa. Calmos, demonstravam tristeza e preocupação. Percebeu algo diferente. Acreditava que a ausência física da avó fosse o motivo das novas brincadeiras com ele e sua irmã. Era preciso distraí-los. A humanidade sofria e chorava. Para ele, até mares e oceanos estavam bravos, pois jorravam ruidosamente suas águas muito além de seus perímetros. Viu na televisão o que o jornalista chamou de “ ressaca” até no Mar da Galiléia.
Ficou sem contato com os amigos. Acompanhava pela janela televisiva o que estava a acontecer em vários países. Momentos tristes. Passou a detestar aquela palavra. Um dia alguém gritou FIQUE EM CASA. Indagado sobre isso, disseram que seria necessário para que as pessoas não adoecessem. Nessa ocasião teve contato com o lado precário do dia a dia. Pessoas, até crianças como ele, não tinham comida, casa, roupa. Não podiam nem ficar doentes. Parecia um mundo sombrio e ingrato. Contudo, viu também o nascer da amizade de um desconhecido por outro, Vovó gostaria dessa parte. Uma pessoa a cuidar de outra.
A música, que penetrou em seu cérebro e que vinha do rádio do carro, o lembrou do vizinho tocando violino na sacada do prédio. Todos os não conhecidos se alegraram e cantaram. Gostou daquela cena, que se repetiu diversas vezes. Outros até apresentaram suas habilidades na flauta, no violão. Acompanhando as situações diferentes que surgiam diante de seus olhos: sorrisos, acenos, palavras de conforto, ajuda humanitária, orações, “pode ficar com esse jogo para você” (chegou a ouvir da irmã, fato que jamais pensou que aconteceria), ruas desertas, apelos dos governantes que em sua mentalidade de criança entendia antagônicos por diversas ocasiões, sentiu que existiam muitos fatos além da redoma em que vivia. Analisou e compreendeu que a situação mundial era difícil, mas poderia trazer muitos ensinamentos. Mais uma vez a lembrança da avó marcou presença. E agora, será que todos os habitantes da terra aprenderam a lição após ouvirem FIQUE EM CASA?
“Chegaram”, ouviu.
A vida se normalizou.
Alexandre Sansone
São Paulo, 14 de abril de 2020