A pós-verdade e o caso Lula
Ouço muita gente dizer que não entendeu nada do julgamento do habeas corpus de Lula pelo Supremo Tribunal Federal. Quanto a mim, estou feliz de ainda entender qualquer coisa, depois de assistir àquele show de horrores. A cena bizarra de Gilmar Mendes votando a favor do ex-presidente, cheio de moral e posando de imparcial por livrar a barra de seus inimigos declarados, ao mesmo tempo em que distribuía chineladas verbais nos petistas, aproveitando que estavam à sua mercê, foi o primeiro presságio da sucessão de insanidades daquela tarde. A humilhação de terem os petistas de beijar a mão de seu mais feroz adversário político no Supremo só conseguiu ser superada pela indignação com a alta traição de seus supostos aliados, sobretudo Fachin, contra quem circularam na internet notas de repúdio mortalmente magoadas, lançadas pelos mesmos que outrora apoiaram a candidatura do ministro à Corte. Amizade de político dura pouco, é verdade. No fim das contas, resta-nos ao menos a felicidade de saber que poderemos contar a nossos netos que vivemos para assistir ao já antológico “discordo de mim mesma” de Rosa Weber. A ministra gaúcha, como boa brasileira, perdeu muitos amigos, mas não a piada.
Mas eis que, talvez, as supremas contradições e amargas ironias desse julgamento possam resultar em algum proveito, afinal. Fernando Pessoa escreveu que a derrota e a morte nos aproximam da lucidez e da verdade. Quem bate esquece, quem apanha não, diz o velho ditado. É com essa esperança de que a dor realmente aguce a memória que dirijo algumas reflexões sobre o caso Lula à cúpula intelectual da esquerda – e somente a ela. Não falo com soldados rasos, nem com idiotas úteis, do tipo que não vê problemas em seguir o Círio de Nazaré dependurado na corda da Santa no domingo de manhã e, à tarde, antes sequer de arrotar o pato no tucupi, defender apaixonadamente o aborto e a ideologia de gênero. Gente assim dificilmente conseguirá seguir qualquer raciocínio logicamente encadeado, assim como entenderá pouca coisa de valor ao longo de toda a sua porca vida.
Falo, principalmente, com a intelligentsia militante infiltrada na academia, a quem pergunto com um sorriso de escárnio nos lábios: quer dizer que não gostastes da condenação sem provas (e foi sem provas mesmo) de Lula? Muito engraçado, pois que, para haver ou não provas sobre o que quer que seja, antes devem existir fatos, coisa que o vosso construtivismo social sempre negou. Ou será que compreendi mal vossa epistemologia? Neste caso, tanto melhor! Provem-me, incluindo em suas passeatas cartazes com a expressão “Fatos existem!” escrita neles. De hoje em diante, façam desse jargão uma nova bandeira de luta, que me dou por satisfeito.
Então, vós reclamais que a condenação de Lula não passa de uma grande mentira orquestrada pela mídia e as elites? Ora, mas para que pudesse existir a mentira, teria antes de haver verdade, coisa que os senhores também negam que exista. O senhor Sérgio Moro, aliás, deu-lhes uma maravilhosa lição de “política da verdade”, termo de um vosso guru francês. E fez isso com todo o direito a fazê-lo, já que a vossa própria grei propugna não haver outra verdade senão aquela imposta por meio de revoluções e coerções. Na vossa cosmologia, até a lei da gravidade, se calhar, foi instituída por algum conchavo. Se nisso eu também estiver errado, como tanto quisera estar, então que o movimento estudantil paraense, ao invés de tentar censurar trabalhos acadêmicos, publique uma nota pública de elogio à teoria de que a verdade é um discurso que corresponde aos fatos. Só depois que fizerdes isso podereis também defender que uma sentença judicial também seja um discurso correspondente aos fatos.
Como podem os senhores – logo os senhores! – ter a empáfia de acusar o juiz Moro por ter julgado Lula de modo parcial (e julgou mesmo), se fostes vós os responsáveis por empestear todos os espaços aonde pode se expressar a existência humana com a lama fétida da política, desde a universidade até as galerias de arte, desde a sexualidade até as velhas amizades, sem se salvar nem o direito de um pai de família a escolher sua leitura privada depois de um longo dia de trabalho. "Leia mulheres negras!", dizia um de vossos slogans, que não faz senão provar a necessidade de atualização da frase do Dr. Johnson: não é mais o patriotismo e sim o vosso "lugar de fala" o último refúgio dos canalhas. Portanto, lhes pergunto: se “o pessoal é político” – como dizem as feministas, quando querem plantar a cizânia em casas alheias –, com que fundamento quereis exigir que reine a impessoalidade na 13ª Vara de Curitiba?
Ah! Estão espumando de raiva só por que o ministro Barroso entortou e torturou as palavras da Constituição? Logo os senhores que jamais acreditaram nas leis, essa invenção burguesa para dominar o povo; que consideram as palavras nada mais “regiões discursivas em disputa”, como diria outro vosso francês. A propósito, não vi ninguém reclamar quando o mesmo Barroso, um dos principais expoentes da babel linguística que se tornou este país, resolveu, sempre com as melhores intenções de sua puríssima alma politicamente correta, sugerir que se fizesse terra arrasada do termo casamento. Lembram? Caso não lembrem, tenho certeza que não irão esquecer por muito tempo o contorcionismo hermenêutico de quinta categoria operado pelo ministro para modificar o conteúdo lógico da cláusula da presunção de inocência.
Finalmente, os senhores jamais poderiam ter a ousadia de apelar para o testemunho sincero da consciência de quem quer que seja sobre a inocência de Lula, porque suas teorias tornaram o ser humano superficial, sufocando a expressão de todo e qualquer sentimento individual autêntico e profundo debaixo dos slogans e chavões que compõem o vosso “sentimento de classe”, que dito de outro modo não passa de histeria coletiva. Se algum dia, antes de dormir, vos perguntardes, com o coração dilacerado pelo sofrimento de ser vítima uma de injustiça, como é possível que alguém condene um inocente sem provas e conte as mais infames mentiras sem nenhuma sombra de arrependimento, lembrai-vos nessa hora escura das palavras de Dostoiévski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. E durmam sabendo que fostes vós mesmos que banistes o sentimento cristão de culpa e normalizastes a psicopatia.
De todos, este é o vosso supremo paradoxo: o de serdes trucidados através do uso de vossa própria gramática intelectual espúria. Ou não pudestes ainda reparar como estais enredados em sua própria teia conceitual? Se não conseguistes ver isso, é porque ainda não sofrestes o bastante. Nesse caso, espero – para o vosso próprio bem – que tenhais o fígado moído até que aprendais, sentindo na pele, que a verdade existe. De todas, esta é a vossa mais amarga ironia: Lula é inocente, mas os senhores não têm moral para reivindicar a sua inocência. E caso também não saibais o que significa ter moral, basta recordar a historinha que nossas mães contavam sobre um menino que mentiu tanto que, quando falou a verdade, ninguém acreditou. Ou daqueles sopapos que os pais antigamente davam na orelha dos filhos quando eram pegos na mentira. Infelizmente, graças a algumas de vossas diabruras, como a famigerada Lei da Palmada, pais como estes estão à beira da extinção. De qualquer maneira, se nunca ouvistes a historinha, nem levastes uns bons safanões educativos, isso só confirma uma suspeita que sempre tive: intelectuais orgânicos não nascem de mulher; são paridos pela ideologia.
(Crônica escrita em 12/04/2018, logo após o julgamento do Habeas Corpus nº 152.752/PR, impetrado em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A conclusão foi pelo indeferimento da ordem, por entender a Corte que a decisão impetrada se alinhava aos precedentes do Supremo Tribunal Federal que permitiam a execução provisória da pena após a condenação penal em segunda instância).