O HOMEM QUE DESAPARECEU.
Do outro lado do balcão figuravam as mesmas pessoas de todas as manhãs, a maioria de idosos que aproveitavam a caminhada para passar no açougue e comprar mistura do almoço. É a massacrante rotina de todos os dias. Alcebíades, funcionário do mercado há cinco anos, estava no seu limite, desejava largar o emprego, arranjar coisa melhor, porém, a idade não lhe favorecia, e, em tempos de pandemia muitas empresas estavam paradas, outras, ameaçavam fechar as portas.
Logo no primeiro atendimento - reclamação - não fazia cinco minutos que o cliente estava esperando e disparou a falar mal e bater no balcão. Disse que estava ali quase meia hora e ninguém o atendia e que era um absurdo ficar tanto tempo na fila. Alcebíades respirou fundo, contou mentalmente até dez, colocou um sorriso no rosto e foi atender o senhor, que continuou a reclamar. Estava sem máscaras, não respeitou a distância mínima nem o isolamento, e mesmo sendo do grupo de risco, foi ao açougue comprar meio quilo de carne moída.
É a massacrante rotina de todos os dias...
Brigar era besteira, a freguesia mesmo errada, sempre tinha razão. Por muitas vezes Alcebíades tentou argumentar, foi em vão, saiu por ruim. Desistiu de explicar aos clientes mais idosos a necessidade de isolamento, seu chefe lhe deu uma bronca por isso. Dia após dia, hora após hora, cliente após cliente... A mesma coisa do mesmo jeito o dia inteiro e o tempo todo.
Uma multidão de pessoas no mercado...
Corredores lotados, crianças, idosos, pais, mães, famílias inteiras. O coração estava em tempo de explodir dentro do peito tamanha era sua revolta, e a alma parecia querer voar para bem longe. Era já quase três horas da tarde e Alcebíades ainda não havia almoçado, movimento frenético. Um dos colegas, percebendo que o pessoal que havia entrado às oito da manhã já tinha retornado do almoço, e ele ainda figurava no balcão, questionou-o.
— Ô seu Alcebíades - disse o colega - Mas já não era para o senhor ter ido almoçar meu camarada?
— Sim.
— Que horas o senhor entrou?
— Nove.
— Sério...
— Meu horário é às dez, mas pediram para entrar antes por causa do movimento…
— Caramba! Nove horas seu Alcebíades!
— Isso mesmo.
— E o senhor deve de estar morrendo de fome né.
— E como.
De repente, o movimento que estava frenético ficou fora de controle. Clientes apressados, exigentes, carrinhos lotados. Atendeu mais dois, três, quatro, perdeu a conta de tantos, nada de almoço. O colega se incomodou, reclamou ao chefe, que só então foi dar conta que havia esquecido ao funcionário.
— Seu Alcebíades - disse o chefe dando-lhe um tapinha nas costas - O senhor não foi almoçar ainda?
— Fui não.
— Caramba… Me esqueci. Você pediu para algum outro líder para descer e ir almoçar?
— Não.
— Tá certo… Faz um favor então.
— Sim.
— Vai lá almoçar.
— Não precisa falar duas vezes.
— Só mais uma coisa seu Alcebíades… Qual é sua idade? O senhor não está no grupo de riscos?
— Faltam cinco meses para eu entrar no grupo de risco.
— Cinco meses! Fazer o que, vai lá almoçar.
Alcebíades terminou de atender o último cliente. Olhou no relógio da balança. Quatro da tarde, a barriga roncava. Saiu da frente do balcão, não conversou com ninguém, foi até o lugar onde se lavava as botas e a luvas de aço. Higienizou-as, secou-as, saiu do setor a passos lentos, higienizou as mãos com álcool, máscara no rosto. O mercado lotado, embrenhou-se na multidão, pessoas sem máscaras, sem respeitar a distância mínima… Seu Alcebíades desapareceu na multidão…
Duas horas depois e nada dele voltar, os colegas perguntavam. Só então o chefe percebeu que ele não havia voltado. Procurou Alcebíades em tudo enquanto foi de canto. Vestiário, banheiro, refeitório, outros setores, entornos da loja, dentro da loja, nada de encontrá-lo… Parou, pensou… Ligou no RH, perguntou para a secretária… Não fazia meia hora que ela viu Alcebíades passado por ali. Alguém disse que ele ia pedir demissão, mas o RH não estava atendendo ninguém por causa da pandemia. A secretária disse que não o viu mais, simplesmente desapareceu.
Alcebíades nunca mais foi visto por nenhum dos colegas, nem os mais conhecidos, em nenhum outro lugar da cidade ou do bairro onde morava, do país, do mundo, do planeta, aliás, simplesmente, desapareceu…
Onde estará seu Alcebíades em meio a essa terrível quarentena pandêmica?
( Embora o personagem desta crônica e sua atitude seja fictícia, o cenário descrito aqui, é a minha realidade de todos os dias e a de muitos outros colegas. Trabalhadores de grandes e pequenos supermercados. A todos nós, deixo o meus parabéns. )