O ENGRAXATE
O ENGRAXATE
Andrade Jorge
Nestes dias de reclusão domiciliar, devido ao maldito vírus, que está grassando o planeta, temos tempo para reflexões sobre muitos acontecimentos em nossa vida.
O pensamento voa feito um passarinho, e muitas lembranças povoam a mente, retornei no tempo, no tempo de criança, da adolescência, ri sozinho das recordações.
A internet também contribui para passar o tempo de reclusão, e num desses dias, li uma crônica do amigo Eusebio Santos, escritor e ativista cultural, sendo um expoente na recuperação e preservação da nossa famosa “Estaçãozinha” em Jundiaí (lendária Estação de trem, que foi criminosamente incendiada), onde ele conta sobre a experiência de ser engraxate na adolescência. Lembrei-me, também passei por essa experiência, e conto já.
Pois bem, na década de sessenta, quando tinha entre onze e treze anos, morando numa casa da Cia. Paulista de Estrada de Ferro, na Rua Abolição, Bairro Barreira, em Jundiaí, porque meu saudoso pai trabalhava na passagem de nível dos trens, logo, ele era o Porteiro da passagem; E como todo moleque da época, gostava de ter um dinheirinho pra comprar os doces de preferência, tomar uma sodinha, assistir filme no Cine Ideal, que ficava na Rua Rangel Pestana, e que foi fundado em 1950, com 500 lugares, exibia filmes em 16 mm.; Nossa turminha ia de terça-feira, assistir um seriado continuado, mas teve uma vez que fomos convidados a retirar-se do recinto, só porque estávamos fazendo muita bagunça, saiu a fileira inteira. Era assim, fez bagunça, se o lanterninha flagrasse, retirava a pessoa, e ficava suspenso por uma ou duas sessões. Aos domingos a diversão era o matine no Cine Ipiranga, um cinema que ficava na Rua Barão de Jundiaí, era chique. Mas, ficar pedindo dinheiro pro pai ou mãe a toda hora não dava, mesmo porque era tudo muito bem controlado. Então, o jeito era fazer algum trabalho, que resultasse num ganho.
Alguns amigos achavam que ser um engraxate seria uma boa, gostei da ideia. Voltei pra casa e anuncia as boas novas, seria um engraxate! Mas, tinha que ter o capital inicial, e de onde veio? claro, do BNDS do bolso do “Seo” Didi (meu pai), que arcou com todo gasto com na compra das latas de graxa, escova, tintas, os panos minha mãe, dona Alice, recortou de tecidos velhos. A montagem da caixa do engraxate, também ficou por conta do “seo” Didi (apelido do velho).
Meu treinamento como Engraxate foi realizado em casa mesmo, engraxando os sapatos do Pai (que eram 2), da Mãe (um sapato de sair), os outros dois eram sandálias, e os meus dois (um de sair e o outro pra ir na escola). A primeira atitude era verificar se o sapato estava muito sujo, se estivesse, era bom ter um vidro com água, e com um pano retirar a sujeira, depois passar a escova, mas atenção, a escova usada para sapato preto, não se usa no sapato marrom, e vice versa, assim como os panos. A seguir passar a graxa com pano macio em todo sapato, até nas beiras da sola e no salto, porém, nestas partes é bom usar uma escovinha, essas usadas para escovar os dentes, e tome muito cuidado para não sujar a meia do freguês. Esfregar bem com um pano macio, e para o produto penetrar bem no couro, é recomendável dar duas demão; Enquanto troca o pé, o outro já vai secando, depois volte a esfregá-los novamente com escova para retirar o excesso da graxa, aí sim, use um pano de flanela ou lã. Para dar o brilho é assim, cada mão pegando numa ponta do pano, e fazendo aquele movimento, pra cima pra baixo, em velocidade, para ficar nos trinques, e se precisar, pingue umas gotinhas d’água no calçado, e volte ao movimento. Pronto, terminou a engraxada.
Também havia a questão da propaganda do engraxate, então, cada homem que passava à frente, o procedimento era dar uma olhada no sapato, e dizer:
“Vai graxa Senhor?” e ainda complementava meu anúncio com:
“Vamos dar um brilho, a patroa vai gostar!”. Cara de pau mesmo.
Treinamento terminado, tudo pronto, delineei meu campo de atuação: Ruas Abolição, Prudente de Moraes, Dos Bandeirantes, Benjamin Constant, Pracinha defronte a Padaria Palma, todas essas ruas ficavam próximas à minha casa.
Chegou o dia de trabalhar como engraxate, então, garbosamente sai ostentando nas costas a minha caixa de engraxar, não sem as recomendações de dona Alice, e algumas palavras de incentivo.
Meu primeiro ponto seria defronte ao Bar do “Seo” Zezinho, na esquina da Abolição com a Benjamin, ali sempre tinha muitos homens bebericando seus aperitivos, ou como dizia meu pai “matando o bicho” (nunca entendi bem, o porquê aquele bicho nunca morria), mas, era certeza de algumas engraxadas.
Antes de chegar ao Bar do “Seo” Zezinho, que uma vez foi enquadrado pela polícia, porque fazia o jogo do bicho, e à época era uma baita contravenção, cruzei os trilhos da Estrada de Ferro Sorocabana, minha casa ficava entre os trilhos da Paulista e da Sorocabana, cumprimentei o sorridente “Seo” Henrique, que era o Porteiro da passagem de nível, mesmo trabalho que meu Pai fazia na Paulista, e cheguei ao meu primeiro ponto de trabalho.
Ali fiquei esperando a primeira engraxada, a tabela de preço era somente para sapato masculino, e na verdade só tinha um valor, ou seja, um cruzeiro o par, à época o dinheiro vigente era o cruzeiro.
Depois de muitos “Vai graxa senhor?” finalmente o primeiro freguês, minha felicidade atravessou a cidade, mas... na hora que olhei o pé do homem, eu vi o calçado dele: uma bota de cano comprido, Virgem Santa! E a bota estava bem suja, mas não podia recusar, afinal que engraxate era eu? E logo no primeiro trabalho? Falei,
___ Sim Senhor, é pra já;
Ele colocou o pezão no aparador de sapato, no caso bota, gastei quase toda minha água e todos os trapos na limpeza da bota, depois tome graxa preta, meia lata se foi, fiquei pensando: --- tinha que ser logo uma bota! E lembrei que não tinha preço na minha tabela para botas! Comecei dar o brilho, e perguntava ao freguês: Tá bom Senhor? E ele pra mostrar quem mandava, dizia “Dá mais brilho, não ta bão não” Depois de vários “tá bom moço! Já nem era chamado de Senhor, era moço mesmo. Finalmente, ele concordou, e cobrei um cruzeiro, por absoluta falta de experiência e previsão de preço. Fiquei mais um pouco no ponto, e resolvi encerrar meu turno naquele dia. Cheguei em casa, e minha santa Mãe indagou: Mas já de volta? Respondi meio cabisbaixo:
___ É mãe, pensando bem, acho que ser engraxate não é bem meu ramo.... Ela riu, parece que já sabia.
Ainda trabalhei mais um tempinho como engraxate, mas encerrei a firma, por absoluta falta de identificação com o trampo, contudo, tinha que pagar o investimento do meu pai, assim, fiquei algum tempo engraxando os dois sapatos dele, e os da minha mãe.
Havia outra atividade que todos os anos, na época de Finados, a turma ia pra frente do Cemitério central, que fica na Rua Henrique André, para vender vela, flores, ou carregar água em baldes, para as famílias que estavam limpando os respectivos túmulos dos entes queridos. Enquadrei-me nessa atividade.
Cobrávamos um valor para esse transporte, salientando que a água era do próprio cemitério. Entretanto, não me dei muito bem nesse serviço, porque não marcava direito a posição dos túmulos, e na volta com o balde cheio, não lembrava mais quem solicitou meus préstimos. Às vezes, alguém vendo o balde cheio se interessava. Meu ganho no cemitério era bem pequeno. Os moleques até tiravam aquele sarro.
Como comerciante autônomo não me dei bem. A coisa melhorou quando fui trabalhar como Office Boy de uma Advogada a Dra. Maria Aparecida Rennó Cortina, o escritório dela ficava na Rua do Rosário. Ali deu certo, de lá fui trabalhar no 2º Cartório, num prédio que ficava na mesma rua.
Lá também aconteceram muitas estórias, outra hora conto.
FIM
NOTA DO AUTOR: Durante a Segunda Guerra Mundial, no período da ocupação anglo-americana, apareceram os “sciusciàs”, garotos que lustravam as botas dos militares. A dura rotina dessas crianças e jovens são descritas por Vittorio De Sica, no filme “Sciuscià’, em 1946.
A popularização, porém, remete ao século 19, com a criação do sapato polonês, na Europa. Os engraxates passaram a mostrar seu serviço nas ruas, principalmente, nas grandes cidades do Reino Unido.
No Brasil, em regime de subemprego, os primeiros engraxates surgiram no contexto das cidades, com a imigração italiana, no Estado de São Paulo.
(Fonte Diário de Santa Maria)
02/04/2020