CULTURA, IDEOLOGIA E SUPERESTRUTURA
A cultura é um termo rico de significados; ele é cheio de nuances que podem ser trabalhadas metafisicamente ou pragmaticamente, desde um filósofo até um publicitário, os quais lidam com este termo cotidianamente. Cultuar, verbo, é dar mais valor a algo do que a outra coisa, de maneira bem rasteira - aproximando cultura de liturgia, de ritual e de religião.
Cultura, hoje em dia, é termo tão importante como personalidade, já que alguns antropólogos dos EUA, como os discípulos de Franz Boas: Margareth Mead e Ruth Benedict partiam da ideia de que a cultura moldava a personalidade. Isto está como atestam estudando os japoneses para o Pentágono, durante a 2° Guerra. Vejam que o termo nasce quase que da religião e, com o tempo, vai se tornando mais polissêmico, mas nunca o contrário de cultuar, ou seja: menosprezar algo em detrimento de outra.
CULTURA E CIÊNCIAS HUMANAS
Ele é possuidor de uma controvertida definição nas Ciências Sociais, como a Sociologia e Antropologia, e um pouco da Ciência Política - ora pendendo para o evolucionismo arrogante ou para um relativismo angustiante. Todos se apropriando do sentido original, que é o de cultuar, mas agora apontando como o outro cultua diferentemente de mim.
O termo é rico no sentido histórico e lógico, sendo importante avisar que não nasceu do nada, mas dentro de um contexto de dominação. Isto por parte da visão eurocêntrica do Mundo - a partir do contato da Europa, no século XV em diante - ou até mesmo no pensamento grego clássico, já que este povo também manteve contato com os demais povos do oriente, por exemplo. Os orientais, desde a Muralha da China, ou mesmo pelas tradições maometanas, a partir do século V d.C., preferiram o isolamento cultural, basicamente contra as influências do imperialismo cultural dos povos ocidentais.
Todavia, cultuar é algo que é latente. Vem desde o momento que o "homo sapiens sapiens" começou a pensar, a separar, a valorizar, a dar importância mais a um gesto do que outro. Como bem foi salientado pelos primeiros antropólogos europeus, da segunda metade do século XIX, a magia (tentativa de dominar os fenômenos da natureza invocando seres sobrenaturais) já demonstra a vocação para o pensamento científico que nasceria com toda força nas sociedades industriais europeias.
Freud, na primeira metade do século XX, pai da psiquiatria psicanalítica, define cultura como superego praticamente. Nossos freios morais. Aquilo que nos dá um ego ideal. Aquilo que nos dá uma lógica da conduta. Se devotamos algo e praticamos o contrário - nós seríamos acometidos dos sentimentos ruins da psicossomatização repressiva.
CULTURA E RELIGIÃO
Conceito amplo e de difícil definição, que geralmente são os bens materiais e imateriais de um povo, que o singulariza diante dos demais, o termo cultura é muito poderoso e vivo, principalmente diante do estranhamento em relação ao modo de vida do outro (alteridade, a peça-chave na pesquisa etnológica). A torre de Babel do Antigo Testamento e os constantes conflitos entre os profetas judeus com os demais povos no Oriente Médio são sinais deste estranhamento.
Cultura é a forma que observamos o outro que vive e cultura algo que não cultuamos. Tomamos consciência do que cultuamos quando vemos o outro.
O termo foi muito importante na civilização ocidental que, talvez, seja a que mais deu ênfase nesta palavra, enquanto todas as demais civilizações não o aprofundaram, mesmo pelo motivo de várias não terem língua escrita.
Chegou-se a um momento que o extermínio, puro e simples pela espada, não era mais racional, em relação aos povos dominados por causa da expansão mercantil do capitalismo, fomentado na Europa. Precisava-se era decifrar a cultura deste povo, para identificar traços, padrões que, ao invés de serem escarnecidos, seriam registrados como exóticos ou pitorescos (que é ver o outro por baixo).
Assim sendo, principalmente depois da teoria da evolução da espécies, do naturalista inglês Charles Darwin, na segunda metade do século XIX, surge a profissão de antropólogo. Não seria mais o sacerdotes católico missionário no Novo Mundo o cronista dos "pagãos"; mas, usando do cartesianismo e do empirismo de F. Bacon, a etnografia seria pioneira e ao mesmo tempo estereotipadora, com visões do "exotismo" (como se os indígenas também não vissem coisas exóticas no antropólogo).
Max Weber, jurista e cientista social alemão da primeira metade do século XX, apontou que Ocidente tem por “singularidade cultural” o processo de racionalização (Weber entende a razão como intenção de dominação, pois era um agnóstico kantiano convicto; logo, racionalização pode ser um aspecto pejorativo na sua visão sobre o Ocidente). Logo, circunscrever o termo cultura já leva em si uma motivação de tentar entender para poder dominar. Seja a dominação explícita de uma guerra espoliante ou de uma sutil expropriação cultural, por parte da indústria cultural contemporânea, por exemplo.
DEFINIR CIENTIFICAMENTE CULTURA
Os pensadores ocidentais da cultura, no século XX, procuraram, dessa maneira, confinar o termo nos estudos sobre o motivo dos homens, das comunidades, dos países e dos continentes viverem, se alimentarem, adorarem deuses e manifestarem seu pensamento de maneira tão diversa. O ser humano ainda se espanta com a diferença, que muitas vezes admira e noutras quer destruir, pois, de alguma forma, atenta ao seu sentimento de superioridade cultural sobre o outro (um ferida "narcísica").
O que deu margem a este interesse foi o contato com povos diversos, após as Grandes Navegações dos séculos XIV e XV, cujo motivo foi o interesse comercial que acabou gerando um nefasto contato entre os europeus e os povos americanos nativos, em prejuízo dos últimos, massacrados que foram. No caso brasileiro, só para darmos exemplo, as línguas tupi, guarani (índios) e ioruba (negros) - dentre vários outros dialetos que não sabemos (pois Rui Barbosa, no começo do Brasil república, ordenou a queima de arquivos deste período - prejudicando muito a pesquisa das raízes da cultura brasileira como algo singular) - nossa identidade cultural ainda é uma névoa.
Todavia, na expansão greco-romana, antes da Era cristã, já eram instigados os pensadores a descreverem o outro, mas ainda em tom de epopeia ou eivado de mitologia.
Urgia-se um paradigma que fosse laico e que desse a justeza do que eram esses povos à luz do contato com a Europa, que se apresentava como dominante, já que os europeus possuíam mais tecnologia que as demais civilizações, o que não significa que eram racialmente superiores aos demais.
A IMPORTÂNCIA DE FRANZ BOAS
Franz Boas, o antropólogo alemão radicado nos EUA, mostrou, no começo do século XX, que uma cultura pode ser tecnologicamente superior, mais sofisticada, mas nunca seus nativos são fisicamente melhores: o sangue do sistema ABO dos indígenas poderia ser transfundido, hoje, dos indígenas, por exemplo, para os europeus, e salvariam as vidas dos "superiores" - apenas para ficarmos neste exemplo.
Sempre os estudos sobre a cultura do outro partiam dos valores dos estudiosos, quase todos europeus, contaminados com complexo de superioridade sobre povos ditos "primitivos" (sem levam em consideração o enorme conhecimento que povos indígenas possuem da Floresta Amazônica que fazem habitem nela milênios, antes do contato com europeus).
Buscavam realçar o exótico, o pitoresco, na visão linear entre selvageria, barbárie e civilização - usada esquematicamente pelos primeiros antropólogos positivistas e evolucionistas, na segunda metade do século XIX.
Daí a dificuldade em estabelecer postulados científicos sobre o estudo da cultura, que talvez Émile Durkheim, cientista social francês que escreveu entre o fim do século XIX até a 1º Guerra Mundial, tenha solucionado dando a ideia de neutralidade axiológica do cientista social diante do fato social como coisa.
MONTESQUIEU E O DETERMINISMO DA GEOGRAFIA FÍSICA SOBRE O MODO DE VIDA
Montesquieu foi o primeiro grande teórico da cultura num esforço laico, no Iluminismo, no século XVII para o XVIII. Ele afirmava que as características geográficas de um povo, se perto ou longe do litoral, se tropical ou polar, moldava a cultura deste povo, lançando a tese do determinismo geográfico, que muitos antropólogos como Franz Boas, no fim do século XIX, tomaram como influência.
GILBERTO FREYRE E A INFLUÊNCIA DA GEOGRAFIA FÍSICA SOBRE OS COSTUMES DE CADA REGIÃO
Franz Boas, por sua vez, lançou os estudos do regionalismo cultural e do relativismo cultural que acabaram influenciando Gilberto Freyre na pesquisa da obra Casa Grande & Senzala, de 1933, que estudou o luso-tropicalismo brasileiro como hibridismo cultural entre índio, negro e português, desprezando a tese da superioridade racial da antropologia evolucionista.
Não era difícil, antes do Freyre, pesquisas de falsos antropólogos afirmando, eugenia, dizendo que a mestiçagem brasileira era a culpa do atraso diante dos caucasianos do Hemisfério Norte.
Deste trabalho de Freyre moldam-se os padrões culturais da civilização brasileira:
i) patriarcalismo poligâmico; o senhor de engenho, branco, português decidia a vida e a morte dos que viviam nas cercanias da Casa Grande. Mantinha relações sexuais com jovens negras que moravam como domésticas da sua casa, tinha filhos não reconhecidos que viviam nas cozinhas e sem registro, mas, oficialmente, mantinha uma mulher branca (sinhá) com filhos brancos, frequentando o mundo o mundo paroquial católico da economia monocultora com ar de nobre;
ii) catolicismo iconoclátrico sincretizado ao fetichismo afro e ao animismo indígena: a arte sacra foi um meio de comunicação da Igreja Católica com a maioria das pessoas, que eram analfabetas (muitos senhores, sinhás e seus filhos eram - quando não iam para seminários católicos ou estudarem em Portugal, basicamente a partir da segunda metade do século XVIII). Por essa razão, os santeiros eram artesão (num momento sem TV, rádio etc) que faziam as imagens do santos católicos reconhecidos pelo papado italiano. Muitos dos santos e santas foram "corrompidos" pelas religiões de matriz afro-indígena, dando origem ao São Jorge como Ogum (um orixá, dentro da poligamia antropomórfica do candomblé). As festas de santo eram os principais acontecimentos destas vilas dominadas pelos patriarcas portugueses e pelos funcionários tributários lusitanos, trazendo momentos de contato paternalista e de falsa intimidade entre dominantes e dominados (padrinhos de batismo e outros elementos brasileiros de "falsa intimidade com os donos do poder";
iii) monoculturalismo agrário latifundiário tropical exportador: o Brasil, ao contrários das colônias do norte dos EUA, não teve livre mercado, divisão crescente do trabalho e hegemonia do trabalho assalariado sobre o escravismo do negro da África ocidental. Sendo assim, toda manufatura, porcelana e demais artigos de artesanato eram importados. Isto sempre deu a ideia de o que vem de fora é melhor e o que é produzido no Brasil é ruim, ou infelizmente, em um termo horrível que foi dito até pouco tempo ("serviço de negro"). Somente com a entrada em massa dos desempregados, famintos e aventureiros imigrantes europeus, sírio-libaneses e japoneses, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, foi que o comércio e algumas parcas indústrias de tecido, alimentos, etc. - vieram a surgir no Centro Sul e algumas capitais do Nordeste. Mas, pela falta de vários burgueses no começo da colonização, o Estado, no fim da 2° Guerra, precisou assumir a infraestrutura e indústria de base - criando uma elite de funcionários do Estado (tecnocratas, vindos das universidades ou do Hemisfério Norte ou nascedouras no eixo RJ-SP);
iv) patrimonialismo clientelístico derivado do patriarcalismo branco-lusitano sobre a estrutura escravocrata.
Logo, a influência elementar do determinismo geográfico começou a dar uma base sobre o motivo dos povos serem tão diversos, em termos de cultura, nos objetos e condutas que cultuavam. Eram diversos, pois o meio que os circundavam os dava mais elementos naturais do que outros, um regime natural que abundava de peixes, por exemplo, mas não dava condições para pecuária dos bovinos, como no caso dos esquimós.
Assim sendo, o meio geográfico ia sedimentando traços culturais que ficavam perenes, os quais davam as características de identidade aos povos, como cor de pele, alimentação, culto, musicalidade, etc.
Todavia, por meio das ideias marxistas, nascidas na Revolução Industrial, nem sempre esta superioridade era natural, mas nascida do imperialismo e da luta das classes dominantes que exploravam as demais, não proprietárias dos meios de produção.
CULTURA: UM DILEMA
Cultura pode ser expressão, no seu nascedouro enquanto conceito, no Iluminismo do século XVII, de um projeto eurocêntrico também, que passou a ser a maior preocupação dos antropólogos no século XX, apontando para um caráter ideológico da expressão cultura. Porém o termo ainda continua inquietante, dado que cultura é mutante; são poucas as culturas que ainda permanecem idênticas como há milênios; caso hajam, os antropólogos logo estão lá para realizarem pesquisas etnográficas.
A cultura de um povo (povo não existe no marxismo, mas classes em luta) pode assimilar características de outros povos, num fenômeno chamado difusão. O contato entre duas culturas pode ser amigável ou conflitante, onde não há hibridismo, mas resistências mútuas. Podem-se identificar muitos desses conflitos atualmente, como o conflito entre ocidente e variantes radicais do islamismo.
Ainda mais hoje, que a cultura midiática, o comércio exterior e a guerras distribuem a globalização pelo Planeta, que muitos dos seus críticos chamam de "americanização do mundo", o termo cultura nunca esteve tão em voga, tão urgindo estudos mais fecundos. Os estereótipos culturais nunca foram tão fabricados pela mídia - mas sendo destruídos nas redes sociais que estão colocando pessoas de diferentes continentes em contato, por meio de tradutores artificiais (aplicativos). Há uma necessidade de não explicar midiaticamente como é a complexidade do termo cultura ao telespectador.
Quem estudou cultura, principalmente na segunda metade do século XIX, quando nasce o darwinismo social, passou a adotar critérios de hierarquia cultural, como culturas com escrita e sem, culturas com maior tecnologia e outras sem, cultura isolada e não isoladas, culturas primitivas e civilizadas. A hierarquia não parou nem mesmo no imaginário popular, que ainda difere cultura erudita e cultura popular, sempre de um ponto de vista ou de positivar ou de negativar.
CULTURA, IDEOLOGIA E SUPERESTRUTURA
No marxismo, por exemplo, o termo cultura é substituído pelo termo ideologia, que é pejorativo e liga-se na ideia de visão de mundo de uma classe sociais, que o marxismo tanto valoriza nas suas análises - sem nem imaginar um conceito de funcionalidade cultural. Por isso que o marxismo não consegue entrar na antropologia, pois a cultura nunca foi o foco dos marxistas, a não ser com Antônio Gramsci e a primeira geração da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer e Walter Benjamin).
Semanticamente, o termo cultura é muito difícil de ser resumido em poucas palavras, como modo de ser de um povo, etc etc, que é o ouvimos sempre. O termo cultura termina sempre possuindo uma vasta gama de significados em dicionários e no imaginário popular, sempre remetendo a dicotomias, num termo altamente dialético.
A palavra pode denotar "cultuar", que é um verbo próximo de adorar, dar valor. Logo, uma cultura é uma seleção de coisas que se dão valor em detrimento de outras, podemos pensar. Uma cultura cultua um repertório de alimentos, danças, deuses, arquitetura, na qual há uma identidade do grupo, mas que também se recicla.
Uma cultura é dinâmica e nunca permanecer estanque, conforme observamos nas escolas literárias, nos tipos de música e na diversidade religiosa dentro de um mesmo país. Por esse motivo, quando, por exemplo, mencionamos os Estados Unidos, há os EUA negro, branco, protestante, católico, hispânico, nortista, sulista, indígena, ruralista, urbano – enfim, há uma pluralidade de aspectos que não são abarcados num primeiro momento: daí confundirmos cultura, nos tempos de hoje, e clichê ou estereotipia. Perigosíssimo isso!
Dessa maneira, o termo cultura é inseparável do termo identidade, que significa a forma como alguém concebe a si mesmo. Cultura, identidade e repertório cultural então são 3 elementos indissociáveis. Mas no mundo contemporâneo temos múltiplas identidades, conforme o tipo de trabalho que fazemos como aquelas pessoas que têm contato com outros países, por conta do serviço que realizam. Fora isso, que a cultura midiática e a INTERNET nos colocam cada vez mais na aldeia global, nos espaços virtuais “desterritorializados”. Outro perigo: a perda da identidade ou da identidade fluida.
Só a partir desta distinção entre dicionários e imaginário popular é que já podemos ver a cultura por um ângulo fundamental: os tipos de cultura, as culturas que são valorizadas, as que não são as "superiores" e as "inferiores", mostrando que o campo cultural também é um campo de tensões, de lutas, de afirmações e “desafirmações”.
O dicionário como cultura padronizada e oficial; o imaginário popular como cultura não escrita e mais sujeita às maleabilidades. Logo, cultura deve sempre ser entendida nas diversas culturas, enquanto unidade e diversidade, num pensamento que precisa lidar com contrastes, dialeticamente.