"AS VIAGENS SÃO OS VIAJANTES"
Há sempre um momento, em toda e qualquer festa de aniversário, ou comemoração afim, que os assuntos banais como o tempo, o futebol, os últimos acontecimentos políticos, terminam e os olhares se desviam para as ilhas de segurança, em geral o cônjuge, como que se as pessoas já soubessem que esse é o limite do superficial, do permitido. O medo da espontaneidade é muito acentuado em nossa sociedade e acabamos evitando tais circunstâncias, talvez pela possibilidade de não sabermos lidar com elas, ou apenas pelo fato de que ser espontâneo significa deixar cair as máscaras sociais e mostrar quem realmente somos: pessoas simples com vidas comuns.
Esse não foi o caso naquela noite, pois a conversa, ou melhor, o monólogo não terminava. E não terminava porque a simpática e jovem senhora não parava de narrar suas viagens, a princípio todos os olhos estavam magnetizados pelos lugares exóticos, pelas culturas distantes que nos apresentava. Tínhamos acabado de nos conhecer, três casais tão diferentes entre si, sentados a mesma mesa, compartilhando experiências, só seria possível numa dessas festas, em que abrimos mão de algumas horas para demonstrar nossa amizade a alguém. Às vezes ainda me pergunto, por que vamos em tantas festas que não queremos, com pessoas que não conhecemos, sorrindo sem vontade e comendo sem prazer. Está aí o pilar de nossa sociedade capitalista, a boa e velha hipocrisia do network. E o pior de tudo é que voltamos no ano seguinte pra mesma festa.
Regressando ao monólogo, passeamos pela bela Paris, com sua bela e imponente torre, visitamos o Museu do Louvre e a Catedral de Notre Dame, na Espanha conhecemos o magnetismo dos Jardins do Retiro de Madri e a Gran Via, e tantos outros lugares espetaculares, na China já estávamos enfastiados de tantas andanças, ou tanto exibicionismo, contudo ouvíamos atentos sobre a Cidade Proibida e o Exército de terracota, quando chegaram as pirâmides do Egito foi a gota d’água, não conseguíamos mais fixar um mínimo olhar cortês à fina senhora, não por que esta não tivesse seus dons de narradora, isso tínhamos que reconhecer, a riqueza de detalhes, as sutilezas observadas, os pormenores percebidos, mas isso tudo se tornou cansativo e pedante ao longo do tempo.
Lancei mão do seguinte estratagema, olhava para ela, mas não a ouvia, ficava pensando em outras coisas, não que realmente tivesse muitas coisas úteis para ocupar o pensamento, mas era um recurso que eu acreditava representar uma pequena vingança ao fato daquela mulher já ter viajado o mundo e ostentar isso em rodas de conversa com estranhos. Volta e meia dava uma pequena meneada de cabeça, como se interagisse com os relatos cosmopolitas, mas prestar atenção jamais, já tinha dado isso ao longo de mais de quarenta tortuosos minutos, e a paciência já esgotara.
Certamente existem muitas pessoas assim, que se comprazem mais em contar suas viagens do que em vivê-las. Viver é apenas um detalhe, uma necessidade antropológica, o deleite está em divulgar pelas redes sociais, em propagar em bate papos e rodas de conversa seus requintados deslocamentos mundo afora. O poeta que disse que para viajar basta existir estava certíssimo, as paisagens talvez não sejam sempre iguais, mas a imaginação realmente é essencial. Conheço pessoas incríveis que nunca saíram de seus estados, encantam pelo que são sem precisar mostrar fotos ou souvernirs, contam causos, não ostentam roteiros turísticos e são muito mais agradáveis.
Mesmo assim, todos permanecemos polidamente sentados na árdua tarefa de ouvi-la, até o momento da libertação final, o “cantar parabéns”, aquele ritual mais aguardado nas festinhas de aniversários, que depois de executado traduz a permissão para ir embora, a licença para cada convidado continuar sua vida insossa, o emblema que a missão foi devidamente cumprida e que você é um sujeito legal. Sinalizo à minha esposa a intenção da despedida, não comer um pedaço de bolo é indelicadeza, assim o fazemos. Duas crianças que apostavam corrida esbarram na mesa e derrubam copinhos de refrigerante, percebo alegria sincera no rosto de alguns. Se “as viagens são os viajantes”, ora, as festas são os convidados. Depois de alguns abraços, vamos embora.