O leitor de Nietzsche que não abre o livro
Muito raramente me dou ao trabalho de tentar ler as capas do livros de outros passageiros. Talvez ao não tentar realizar tal ato se mostra em mim a satisfação de poder ler escondendo a minha capa. As minhas capas não são das mais gloriosas e muitas vezes tenho que, quase que com as duas mãos, pegar a minha atenção e reposicioná-la nas linhas que me contam histórias mais interessantes que as de qualquer um, inclusive eu, poderia contar naquelas tardes abafadas. Uma boa história pode se perder dependendo da forma que é escrita ou lida.
Muitas vezes deixo para abrir o livro dentro do ônibus, pois não me sinto a vontade na leitura, tendo que dividir a minha atenção entre os parágrafos que vou lendo e a ansiedade que me provoca a espera do ônibus. E nesse dia "Otelo" foi bem tranquilo e acomodado, por uma boa parte da viagem, na minha mochila.
Aquela capa prendeu a minha atenção; me fez pensar em algumas coisas de Nietzsche que já cheguei a ler. Se isto aqui fosse uma conversa, caro leitor, antes de eu começar a falar o que penso sobre Nietzsche, você teria que me informar se acha que devemos levar em conta o que e como viveu o autor, na hora de analisarmos sua obra. Sabe aquele vazio que muitos dizem sentir? Este vazio Nietzsche não tinha, desconfio que ele era cheio demasiadamente de si mesmo, tanto que transbordou para as páginas.
E lá estava Nietzsche comigo no ônibus, mas me parece que esse Nietzsche não está sendo como um dia foi. A obra não foi aberta uma única vez. E em minha mente pairavam indagações sobre se parecer inteligente. Por que alguém vai querer parecer algo que não é? Nunca pude ter com um, mas seriam assim todos os leitores de Nietzsche?
Não pude esconder a insatisfação ao ver um leitor de Nietzsche, além de não estar lendo o seu, não deixar que aquela bela moça pudesse continuar seu calhamaço de "Corte de névoa e fúria". Aquele livro de Nietzsche em uma estante estaria sendo melhor utilizado, do que fechado como estava com aquele rapaz que falou a viagem inteira.
Quando o "leitor" chegou no seu ponto e desceu, observei que logo depois a moça estava com o livro aberto.
Ao examinar com certa minúcia a ação de andar expondo a capa de uma obra de Nietzsche para poder cativar mocinhas desavisadas por aí, chego a conclusão: é melhor que aquele leitor nunca abra aquele livro.