O MUNDO NUNCA MAIS FOI O MESMO

Hoje é o meu aniversário. Você lembra, não é? Estou completando 40 anos! Pois é; cheguei na fase do jogo dos “enta”.

E posso até imaginar você aqui me abraçando e logo em seguida olhando no fundo dos meus olhos com um sorriso largo. Com suas mãos firmes em meus ombros, você então diria algo do tipo: “Cara, você está ficando velho, hein!”

Contagiado pelo seu sorriso, eis minha resposta: “Pois fique sabendo que só porque você tem a metade da minha idade, não quer dizer que terá como escapar desse mesmo destino!”

Fique tranquilo! Eu retribuiria o abraço com muito carinho, pois não me esqueci que você faz aniversário no mesmo dia que eu. E à meia noite eu lhe daria mais um forte abraço, desejando-lhe “feliz ano novo”.

Uma grande distância temporal nos separa. Sinto muito não poder te abraçar pessoalmente. Por isso estou escrevendo esta carta. Que coisa antiquada, você não concorda? Enquanto escrevo esta última frase, não posso conter meu riso. Tenho certeza que essas também seriam as suas palavras se viesse a pegar essa carta na mão. Você sempre esteve à frente do seu tempo. Um vanguardista de primeira.

Tenho muitas novidades para lhe contar. Mas antes quero lhe dizer uma coisa: O que sou hoje aos quarenta anos, devo muito a “você”, ou melhor, a mim mesmo quando eu tinha vinte anos. Você soube viver com responsabilidade e espírito de aventura.

Ainda antes das novidades, preciso lhe dizer que hoje de manhã assisti novamente àquele documentário. Fiquei muito orgulhoso ao ver você contando sua história. Que história! Você ajudou a salvar a vida de muita gente! Inclusive a minha! Minhas palavras não são suficientes para lhe agradecer por todo o seu empenho.

Você estava no segundo ano da faculdade de medicina. No meio da pandemia, logo se voluntariou para ajudar os médicos e enfermeiros a cuidar da multidão de doentes que corria para os hospitais. Você não estava preocupado com seu status, currículo ou ganho financeiro. Sua missão número um era salvar vidas. Você teve que pagar um preço elevadíssimo. O curador foi contaminado pelo vírus. Ficou entre a vida e a morte. Graças a Deus, sobreviveu.

Você sempre será uma grande inspiração para os futuros médicos. Se bem que a medicina de hoje tem pouco a ver com o que você aprendeu na faculdade...

Vamos às novidades! Passados vinte anos daquela terrível tragédia mundial da Covid-19, o mundo não é mais o mesmo. Você teria dificuldade em reconhecer traços da “antiga civilização”. Hoje os médicos raramente precisam tratar doenças. Eles trabalham para preveni-las. Muitas profissões se extinguiram ou mudaram seu foco radicalmente. O dia a dia dos policiais está longe de ser prender os desordeiros. Eles têm a nobre missão de orientar as crianças ensinando-as a cuidar da ordem que surgiu depois do grande caos.

Aquele caos abalou as estruturas do “mundo antigo”. Ele foi um mal necessário para derrubar as pilastras apodrecidas que sustentaram aquele mundo por longos séculos. Depois de contabilizar tantas perdas e miséria, a humanidade buscou caminhos para se reinventar. Pelo mundo todo, surgiram concursos de ideias.

Coisas novas precisavam ocupar o lugar dos destroços gerados pela ganância e egoísmo. A imaginação fértil de bilhões de terráqueos trouxe à existência um leque multicolorido de formas inteligentes e saudáveis de organizar a vida em sociedade. Os recursos financeiros, intelectuais e materiais para erguer novas estruturas chegaram como uma grande enxurrada, pois todo mundo estava interessado em participar da criação de uma nova humanidade.

Nem tudo está pronto ainda. Mas você não reconheceria o bairro onde você nasceu no último dia do milênio passado. Tudo mudou. Ali agora existem três vilas cooperativistas. Eu sei que elas nunca existiram em seu vocabulário, mas são uma realidade concreta no meu.

Cada vila funciona como uma pequena cidade autossustentável. Nela os moradores produzem mais da metade de todos os seus mantimentos. Doença é algo raríssimo. Fome é coisa totalmente desconhecida. Todos cultivam a saúde do corpo, da mente, do espírito, da sociedade. O ar é puro. A água do rio que atravessa a vila onde moro é o lar de muitos peixes. Nas margens do rio, uma longa sequência de árvores frutíferas. A natureza é exuberante e todos podem se servir dos seus frutos livremente. Todas as fontes de energia utilizadas são renováveis e não poluentes.

O uso de carros é praticamente desnecessário no dia a dia. Tudo está perto de todos. Veículos autônomos com motor elétrico costumam nos levar para conhecermos a dinâmica peculiar de vilas mais distantes ou para passearmos pelos parques naturais bem preservados e cheios de atrativos.

Os primeiros andares das dez torres da nossa vila abrigam as atividades de distribuição, educação, lazer e serviços. Nenhuma criança precisa ficar presa no trânsito ao ir para a escola de manhã. É só descer pelo elevador da sua torre até o térreo ou, no máximo, caminhar até uma das torres vizinhas. Apesar de ainda se usar o nome “escola”, muita coisa mudou na maneira de ensinar às crianças os conteúdos importantes para se tornarem cidadãos comprometidos com o avanço da coletividade.

O jeito antigo de dar aulas acabou. As crianças amam aprender lições que as tornam mais espertas cada dia. Muitos pais participam das aulas junto com seus filhos, aprendendo e ensinando atividades práticas para a manutenção e aprimoramento da vida na vila. O cultivo constante do senso de coletividade é a melhor prevenção para se proteger do vírus do individualismo.

Não existe mais o estresse de estudar para passar no vestibular ou no Enem. Ficou no passado os longos anos de aulas chatas na faculdade. O que o aluno aprende numa aula de manhã ele normalmente coloca em prática à tarde ou na semana seguinte.

Trabalho infantil existe sim. Trabalho aliado à aprendizagem. Um trabalho que muitas vezes é uma brincadeira bem divertida na companhia dos pais, irmãos ou amigos. As crianças ajudam a plantar e colher as cenouras e batatas que um dia serão seu almoço ou jantar. Elas aprendem a pescar no rio da vila o peixe que ajudarão a preparar para a próxima refeição.

Mas não fique pensando que os avanços foram um retrocesso ao mundo de predominância rural. Trouxemos sim muitas atividades do campo para serem feitas no “quintal” dos espaços urbanos. Mas a vida nas vilas cooperativistas não tem nada a ver com o trabalho braçal enfadonho de outrora. A inteligência artificial é nossa aliada nas mais variadas atividades de produção e consumo, educação e lazer. Nossas crianças aprendem cedo a usar linguagem de programação e a construir e a manusear robôs de todos os tipos.

Ninguém mais passa décadas repetindo diariamente as mesmas rotinas de trabalho. Todos têm a oportunidade de trabalhar em qualquer uma das atividades da vila. No mês de dezembro, cada morador envia sua declaração de interesse em um conjunto variado de atividades profissionais e de novos cursos que pretende fazer ao longo dos próximos doze meses. Um sistema inteligente, chamado Cooperação, organiza uma planilha mensal para cada morador.

Para quem nunca viu isso funcionando pode parecer muito estranho. Mas vou lhe ajudar a perceber como isso acontece na prática no ano 2040. Acabou aquele negócio de ir para um local fixo de trabalho cinco dias por semana e ficar preso durante oito horas fazendo atividades repetitivas. Agora não é mais assim. Cada dia você está escalado para fazer algo diferente dentro da vila. Para finalizar algumas atividades laborais do dia, alguém pode gastar cinco horas, outro pode conclui-la em menos de três horas. Muito trabalho pode ser feito no home-office. Mas a sua planilha mensal mescla atividades em ambientes externos e internos, atividades intelectuais e manuais, atividades sofisticadas e banais.

Nesta última semana do ano, fiz um parto e duas cirurgias, colhi batatas, dei aulas de primeiros socorros, cuidei da limpeza das piscinas e organizei um acampamento para jovens. Na próxima semana, estou escalado para outras atividades. Temos muito tempo livre para brincar com nossos filhos, para atividades físicas, para o lazer e para explorar a cultura.

Saiu de moda há anos o culto às celebridades. Tem muitos moradores na vila que são bons no futebol ou em tantos outros esportes coletivos ou individuais. Temos nosso próprio “estádio” e não faltam campeonatos locais para cada um poder mostrar que é bom de bola. Temos roteiristas, produtores, diretores, atores e atrizes de primeira linha dentro da vila. Em nosso cinema, rodam frequentemente filmes produzidos por nós mesmos ou pelas vilas vizinhas. Não faltam espetáculos das mais diferentes artes para animar nossos momentos de lazer. Pessoas de todas as idades se revezam nas plateias e nos palcos.

Dinheiro se usa muito pouco nos tempos atuais. Pelo menos não da maneira que você conhecia em 2020. O sistema Cooperação credita o valor devido em nossa conta pessoal assim que concluímos a tarefa laborativa do dia. Quase tudo de que precisamos se consegue nas lojas de distribuição da vila. São artigos de qualidade produzidos pelos próprios moradores nas áreas agrárias ou industriais que envolvem as torres da vila. O scanner das lojas, em comunicação direta com o sistema Cooperação, permite a atualização imediata do nosso saldo ao sairmos com nossas “compras”.

Eu gostaria muito que você pudesse estar agora aqui para ver tudo isso. Era o seu sonho. Você foi um dos que logo se empolgou para participar de um dos concursos de ideias após a pandemia de 2020. Você ajudou a liderar uma equipe interdisciplinar de jovens que acreditavam que o mundo poderia ser melhor. Vocês planejaram uma base sólida para o projeto. Aquele longo tempo de confinamento foi bem útil para a vida ser repensada.

A sua equipe selecionou um fundamento testado há séculos. Inspiraram-se num Reino invisível cuja pedra fundamental foi erguida numa cruz. Na sexta-feira mais escura da história humana, o Rei se submeteu à tortura e morte por aqueles que ele queria que fossem seus súditos. Diante do governador romano Pilatos, ele admitiu: “Meu Reino não consiste naquilo que pode ser visto. Não sou um rei conforme o mundo. Por ser Rei, nasci e vim ao mundo para que pudesse dar testemunho da verdade.” [Evangelho de João 18: 36 e 38]

O que a todos pareceu ser o maior fracasso de um projeto grandioso abortado logo na origem teve uma surpreendente reviravolta no domingo seguinte. A pesada pedra do sepulcro tinha sido removida. O corpo do Rei sepultado havia desaparecido. O Rei ressuscitado foi encontrado pelos seus amigos. Ele havia inaugurado o maior avanço tão sonhado e tão distante para os esforços humanos: Ele venceu o poder da morte. A vida sem fim é uma realidade acessível a todos os que seguem pelos caminhos traçados pelo Rei dos reis. Por vários séculos, as sementes desse Reino tem se espalhado por todo o globo. Como um vírus benéfico, elas provocam mutações positivas na vida dos que foram contagiados pelo amor do Rei.

Para os que o acolheram, ele ensinou a orar: “Venha o Teu Reino! Seja feita a Tua vontade aqui na terra!” Para que esse Reino “saia do papel” e se torne visível, o Rei quer instruir os seus súditos a arregaçarem as mangas e fazer as coisas acontecerem.

Toda a equipe de vocês dedicou semanas e mais semanas para estudar e meditar nas palavras, na obra e na vida de Jesus. Vocês compreenderam que a humanidade precisava urgentemente de uma direção superior, vinda do alto. Não tinham dúvidas de que, se a nova sociedade não estivesse embasada nas colunas invisíveis do amor, da paz e da justiça, em pouco tempo se tornaria ruína. A ressurreição de Jesus foi a força inspiradora que guiou a equipe a planejar estruturas que fizessem a sociedade ressurgir das cinzas. O medo da morte deu lugar à sabedoria que cultiva mecanismos que promovem a Vida para todos.

Vocês tinham razão. Um mundo melhor pode ser construído. Você deu para mim esse presente !