Esgoto
É no esgoto que pobres e ricos atingem a mais pura igualdade. Caviar ou pão com mortadela, tudo vira bosta. E no esgoto, as merdas se misturam, formando um mar de excrementos socialmente igualitários. Todos vieram de rabos - diferentes rabos, claro: uns mais flácidos, outro definidos em academias, mas sempre rabos - todos vão para o mesmo canal, onde desemboca e reluz ao ar livre tudo aquilo que nos esforçamos para que ninguém veja.
É curioso que eu tenha tido a idéia de escrever sobre merdas, mas a reflexão veio imediatamente após observar o Canal do Mangue e sentir o odor típico, que logo me levou a pensar que “caramba, as merdas do Rio de Janeiro inteiro estão aqui!”. E isso é genial, gente. Sim, porque enquanto perdendo tempo discutindo sempre as mesmas medidas públicas para diminuir a gritante violência que assola nossa cidade e a desigualdade social do nosso país, as merdas permanecem no Canal, fedendo unidas, sem ligar para o lugar de onde veio, simplesmente existindo, boiando, fedendo. Empestiando o ar, gritando: nós estamos aqui! Aquilo que você não quer ver - tudo aquilo o que você é, o que você come - vira isso: merda. Merda pura. Seja rico ou pobre, saudável ou doente, bairro nobre ou favela, carro do ano ou 1.0: você produz merda. E é na merda que nos unimos. Não importa as diferenças, todos nós somos, essencialmente, animais. E assim como tentamos negar nossos impulsos, negamos nossas sujeiras. No Canal do Mangue, tudo está exposto. E ignorado.
Mas, continuando com a reflexão, o que muito me intriga é o fato de que as pessoas não ligam para o Canal. Está ali, ponto. É só fechar a janela do carro, do ônibus, virar a cara. A merda, quando some de vista, deixa de existir. No Canal, ela perde o caráter de “saiu do meu rabo” e vira simplesmente água suja e fétida. Ora, suja e fétida justamente porque se misturou com o que veio de nós. E enquanto pessoas vivem à margem de nossas bostas, habitando as margens do Canal, nós simplesmente viramos a cara: o puro retrato de nossa vida social. Viramos a cara para o outro, o podre, para o que não é nosso. A criança de rua cheirando cola não é nosso filho, então, viremos a cara. O aluno de escola pública sem professores não é nosso parente, então viremos a cara. O congresso nacional..ora, não é nossa casa, então viremos a página do jornal. Porém, não é virando a cara ou ignorando que o problema desaparece. Claro que devemos pensar em soluções, mas não é esse meu papel, não por enquanto, não como cronista. Apenas anuncio. Ou denuncio. Prefiro dizer que exponho. Gosto de expor o que temos de mais humano: o bom e o mal de cada um de nós.
Não acredito em extremos, mas gosto de explicitá-los e trabalhar com a mistura que vejo por aí. Assim como critico o outro, critico a mim mesma. Porque primeiro observei o hábito em mim, depois o vi na sociedade. Sim, sou fruto de um meio corrompido. Quantas vezes não comentei: “que rio mais fedido, deviam aterrar, isso é nojento”? Muitas! Porém, a observação me abriu os olhos, e eu pude enxergar o que estava por trás daquilo.
Reconheço minhas fraquezas. Mas, justamente por reconhecê-las, transformo-as em qualidades. Não nego que viro a cara, viro sim. Mas não sou a única. A diferença é que eu não nego; eu assumo. A maior parcela da população prefere pensar que “não, eu não tenho preconceitos. Sou uma pessoa liberal e compreensiva, jamais pensaria isso”. Ora, eu assumo. E digo aos que não assumem que, por favor, limpem suas bundas nessas idéias e dêem uma boa cafungada no Canal do Mangue.