Ontem à noite foi deplorável

Ontem à noite foi deplorável. Não tinha capacidade de fechar os olhos e não ver o meu melhor amigo sentado na cadeira que balança. A memória dele parece tão recente. O mundo parece tão cinzento e monótono sem ele. A graça da vida perdeu-se quando ele deixou de habitar fisicamente a Terra. Meus dois olhos fundos, vazios, pequenos sentiam a dor da decepção penetrando nas minhas veias. A dor da perda. Como se tudo que me restava do ano anterior tivesse sido tirado de mim a força, e não adiantava agarrá-las, porque a dor seria a mesma.

Primeiro lidar com a perda do meu melhor amigo. Escrevi uma longa carta de sete páginas frente e verso, contando cada mínimo detalhe que está acontecendo comigo no momento e que queria tanto dizê-lo. Não consegui dizer adeus. Escrever adeus. Dizer que nunca mais vou contá-lo alguma coisa, que simplesmente vou acenar adeus e seguir com a minha vida. Isso não parece certo.

Depois, um dos grandes amigos que já tive gritou comigo, disse coisas que não queria ouvir. Falou tudo o que passava na cabeça dele durante uma hora. Mandando pedra atrás de pedra e me atingiu por todos os lados possíveis. Quebrando todo pedaço do meu corpo que já estava espatifado pelo chão. Minha melancolia me impediu de pensar racionalmente, então, eu apenas chorei por ser uma miséria, por saber que tudo aquilo que ele disse era verdade. Que ele tinha razão. Que tudo que ele disse dói por ser verdade.

Ontem não conseguia dormir. Tudo ao meu redor parecia pesado e adoecia meu psicológico. Cada som que ouvia parecia de frequência três vezes maior. A pergunta que passava pela minha cabeça era “por que?”. Nós e mais nós embolados no estômago, que reviravam tudo que digeri em palavras e em alimento. Entrei no banheiro escuro e sentei no chão do box, de pijama e liguei a torneira. Deixei água gelada cair em cima de mim. Para ver se aquela angústia deixava meu corpo pelo ralo. O choro, misturado com cabelo e água gelada, com apenas uma luz do poste da frente de casa iluminando tudo. A escuridão era o que me restava.

Até que a última memória remota veio a minha mente...

Quando chorei uma hora inteira para ele. Para uma das únicas pessoas que me sentia bem de chorar livremente, meu melhor amigo que não habita mais a Terra. Ele sempre me ouviu chorar e fungar o nariz como um animal. Mas, da última vez, ele simplesmente me pediu: “agora canta alguma coisa pra mim.”. E a única música que me veio na cabeça foi Lanterna dos Afogados do Paralamas.

Cantei a música inteira soluçando e pausando. “Gosto dessa música na sua voz.” disse ironicamente, porque mal saiu uma música ali e isso me fez rir. “Sabia que o nome Lanterna dos Afogados vem de um capítulo do livro Jubiabá, de Jorge Amado? O capítulo retrata o bar Cais do Porto, onde as mulheres dos pescadores esperavam os seus maridos com lanternas, para ajudá-los a achar o caminho certo.”. Obviamente isso me fez chorar mais do que já chorava, nos dois momentos, quando estava com meu melhor amigo e quando estava no chuveiro tentando me desafogar com água.

“Porém, entretanto, todavia... gosto mais de Titãs.” complementou “Quem espera que a vida. Seja feita de ilusão. Pode até ficar maluco. Ou morrer na solidão. É preciso ter cuidado. Pra mais tarde não sofrer. É preciso saber viver. Toda pedra do caminho. Você pode retirar. Numa flor que tem espinhos. Você pode se arranhar. Se o bem e o mal existem. Você pode escolher. É preciso saber viver.”. E logo depois me contou mais alguma curiosidade sobre Titãs.

Fui dormir com o som da voz dele cantarolando “é preciso saber viver”.

Meu subconsciente já estava com ele no script do próximo sonho que teria. Claro, eu só lembrava de nossos momentos ou de conselhos dele.

“Então aquele pilantra disse isso e aquilo” eu contei pra ele no meu sonho. “Engraçado, por que ele está querendo te derrubar te fazendo um elogio. Já parou para pensar que talvez ele tenha razão? Você tem capacidade para estar em uma universidade pública, para ir para a lua, para conquistar qualquer mero imbecil que passar na rua e continua se contentando com o pouco que tem. Por que não ir atrás de crescer?”.

Hoje, acordei em paz, porque pude ter um conselho dele.

Elena Estrela
Enviado por Elena Estrela em 08/04/2020
Reeditado em 11/04/2020
Código do texto: T6910663
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.