O SONHO DE KALYNA
A mulher mais obesa do Brasil não consegue sair da cama há três anos, tem dores terríveis que a impossibilitam de levar uma vida minimamente digna, mas os seus 360kg não a impedem de voar, enquanto repousa, débil, o volumoso corpo, sua mente sonha em ir à praia, em deixar com que ondas a levem e tragam para lugares que não conheceu, nem sabe se existem. A cama, com o passar dos anos, já não suportou tantos quilos de sonhos e sofrimento e veio ao chão, estirada num colchão, ela passa a existência alternando o olhar da TV de 14 polegadas à janela entreaberta.
A notícia me pega de surpresa, numa noite quente e monótona de terça-feira, e me distancio momentaneamente de mim, há urgências que não aguardam um só segundo, impedem-nos de continuar o moto-contínuo da vida, fazem com que entremos em histórias que são e não são nossas, num instante todos estamos naquele colchão, presos dentro de um enorme corpo, que nos impede de dançar, de ir ao supermercado, de brincar com o cachorro, de caminhar sem destino, de poder escolher um destino.
A passar os anos em um quente e modesto quarto, como de fato passa aquela mulher, uma pergunta nos vem a mente: por que comigo? Desgraça, genética, destino? Por que foi dada a mim a cruel missão de ficar presa dentro de meu próprio corpo? Aos enfermos, ao menos, a esperança da cura. Aos moribundos, o consolo da proximidade da morte. Mas a mim, condenação... Tentamos, inutilmente, buscar razões superiores, justificativas religiosas e astrológicas, mas isso de nada alivia tanta dor e desejo de se libertar.
Fico imaginando essas coisas, enquanto o jornal dispara outras inúmeras notícias, que não dão a oportunidade de digeri-las, talvez tantas outras pessoas em situação semelhante de desespero e caos interior. Questiono qual é a real intenção de tanta informação. De maneira geral, elas nos causam uma enorme sensação de impotência e desespero. A vida, ali realçada, não vale mais ser vivida. Guerras, impunidades, assassinatos, corrupção... Mas o que de fato ecoa em mim é a mulher obesa.
Teria filhos amorosos? Há um esposo que a acaricie pra aliviar suas dores? Há vizinhos preocupados com sua saúde debilitada? Há parentes do interior que, em datas festivas, trazem lembranças inúteis? Há correspondências que chegam em seu nome? Nada disso foi noticiado, porque nada disso importa. De fato, o que importa é desumanizá-la, é transformá-la em uma pílula disforme em que telespectadores, cansados, consigam engolir e pensar que assim, por haver alguém em estado tão desgraçado, em aflição tão visível, possam imbecilmente pensar que são felizes, que suas vidas ainda têm algum brilho.
Tento lembrar qual a última vez que tomei um banho de mar, que deixei as obrigações costumeiras de lado e fui tomar um gostoso banho de mar. Morar numa cidade litorânea é engraçado, tantas pessoas chegam de longe na ânsia de ir à praia e você que mora ao lado dela esquece que o mar está ali, com seus encantos espumosos, com seu hálito salgado e convidativo. Acho que é como aquele escritor mineiro dizia: O hábito suja o olhar. Certamente há nos leitos de hospitais pessoas que sonham em fazer o que nunca fizeram quando gozavam de plena saúde, doentes terminais que planejam dar volta ao mundo e amputados em escalar montanhas gigantescas. Acho que a vida, nessas situações, ganha novos propósitos, que não o de comprar uma casa maior ou trocar de carro, e sim o de viver intensamente tudo que não foi vivido.
Essa, talvez, fosse a razão da mulher obesa da notícia desejar ir à praia. Pouco importaria o olhar reprovador dos banhistas, seus pensamentos preconceituosos e mesquinhos, o riso debochado de crianças mimadas, que estudam o dia inteiro em escolas caras, mas não aprenderam ser humanas. Nada importaria a indelicadeza de um ou outro infeliz tirar uma foto com o intuito de publicar em suas ridículas redes sociais, para outras pessoas infelizes curtirem ou fazerem comentários idiotas do tipo “a baleia encalhou na praia” O que importa, de fato, é que o sonho já não cabe mais dentro dela, mesmo em seu imenso corpo, o sonho quer sair e cumprir sua eterna vocação de virar realidade, ainda que essa mesma realidade, cruelmente, lhe negue esse sonho.