O EU DISPENSÁVEL
Existem tantos papéis espalhados e o quarto se encontra envolto em uma bagunça. Pela janela, o quadrado, depois dela – da janela – o jardim, as flores. As flores que procuro fotografar todos os dias para tentar captar o tempo. Como se fosse possível captar o tempo, captar o momento exato no qual uma coisa deixa de ser ela e passa a ser outra. Referente as pedras, mesmo paradas são submetidas a erosão do tempo, aliás, a erosão é o tempo passando nas pedras, é o mecanismo que as mudam, deformam, transformam, leva-as a deixarem de ser o que ainda ontem eram.
As flores, as pedras, o jardim não são dispensáveis. São beleza para os olhos, são parte de ecossistema, são a essencialidade da vida, daquela vida sargaça, diferente das pessoas, da gente, do nós, do eu, do tu. Somos dispensáveis e era sobre essa dispensabilidade que ando a pensar nesses dias em que acordo e olho pela minha janela quadrada. Às vezes acendo um cigarro, outras coloco uma música e espero o nascer do sol – antes o sol nascendo me dava medo, repulsa até, um certo descontrole da percepção de que mais um dia passou – hoje gosto de olhar o sol nascer, parece vida, parece eternal, a vida continua a gritar, porém, lido com esse gritos dentro de meu silêncio, enquanto espero as epifanias que ora chegam ao meio dia, ora chegam no próximo mês.
No entanto, antes das epifanias, do jardim, do sol nascendo, ando a matutar sobre a dispensabilidade da vida. É que um dia desses enquanto fumava um cigarro e olhava o teto branco me veio uma ideia. Fui parando, parando, parando, parando e deixando essa ideia entrar dentro de mim. Claro, ela estava envolta na fumaça que saia dos meus pulmões, parecia névoa de inverno. Obstante, creio que entrou junto a tragada que dei no cigarro e começou a abrir as sete portas do meu corpo e lá ficou, alojou-se na parede da memória: também sou dispensável.
Não que se eu morresse ninguém soubesse ou sentisse algum tipo de ausência, porém, é o fato de ser dispensável dentro do contexto em que me encontro. Agora, no momento no qual escrevo, se eu não escrevesse não mudaria em nada o contexto ao meu redor, quem sabe não mudaria nem a mim. Mandei uma mensagem para uma amiga e disse: “Olha, eu acho que sou dispensável, sabe?!” Ela não entendeu de primeira, deve ter me achado louco, porém, o que almejei dizer é que se eu fosse embora de onde estou a vida continuaria a girar, as pessoas continuariam a seguir com seus afazeres domésticos e essa foi a grande epifania daquele dia.
Quando você cria uma zona de conforto, uma rotina, quando você determina os dias e convive com outras pessoas parece demarcado por uma casualidade estranha. Por um acaso, eu não estivesse aqui, acordado nessa cidade, ou dobrando os lençóis da cama a rotina da casa continuaria, com minha vó fazendo café, meu amigo se alongando no quarto ao lado, e o dia transcorrendo como deve ser.
É que ando notando o quão me fechei em mim e me fechando fui criando falsos alicerces para não. Para não. E não sei o que seria esse “para não”. Talvez tentar outras vivências, outras experiências. Lembro bem da Rita Lee, assim que saiu de Os Mutantes, e voltou para a casa dos pais, e ficou no “Baby, baby, não adianta chamar”, será que também preciso colocar o resto no lugar e tentar um novo caminho? Aqui anda tudo bem, sem mim. Percebo isso através dos exercícios que venho fazendo: não interferir na rotina da casa e observar como a casa funciona.
E, pasmado, funciona na mais absoluta organização.
É, sou dispensável nesse momento de agora. É necessário transicional a vida, o instante, o momento, o tempo. Ainda não sei para onde. Porém, fica a ideia que me desceu dias atrás: eu vou indo, eu tenho que continuar indo, é necessário respirar, sentir outros cheiros, entrar em contanto com outra forma de vida que não a de um quarto com janelas e um jardim e uma casa que já é completa sem que eu dobre os lençóis da cama.
É preciso. Navegar, como diz o poeta.