CORONADA - XI
Sempre quis entender como se processa o choro na gente. Quais sentimentos promovem esse abrir a torneira interior? Em qual momento se destrava esse registro que nos inunda de dentro pra fora? O que é um choro de alegria? Como definir um choro de tristeza?
Ontem a dona Maria partiu. Fatalidade, um acidente doméstico quando tanta gente na idade dela (quase 80 anos), está sendo surrupiada da vida pela falta de clemência do coronavírus, ela, com um histórico de vários problemas de saúde, num acordo tácito dessas matemáticas inexatas e misteriosas, foi subtraída da gente por aquilo que defino como uruca. Urucubaca mesmo. E nada mais falarei sobre isso.
Quero mesmo é falar que quando soube dos fatos, meus olhos umedeceram, mas há em mim uma resistência natural, que me seca e dura o tempo todo eterno entre a apoplexia da surpresa e o pragmatismo da resolução dos problemas mais urgentes.
Sou da família pela afetividade construída nestes cinco séculos de vida, apenas por isso, nada mais. A construção de uma teia sutil de afeto e camaradagem me permite se reconhecer como filho, irmão, o agregado, enfim. E esse tecido, costurado desde a infância pela beleza do encontro de duas famílias pobres e periféricas, foi se definindo seda e chita, fino e denso, laço e nó, em anos que vieram sendimentando a recíproca de reciprocidade, amabilidade, vontade de estar juntos, pois havia cumplicidade, bem-querência, chamego desinteressado. E foi isso que d. Maria e seu Mané (ele também já descansando há tempos), legaram a filhos, filhas, netas e netos. Fruo desse fruto viscoso.
Mas agora atentemos ao fato: a vó Maria voltou ao ponto inicial. "É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte". E me coloco ali, à disposição, acompanho as formalidades exigidas pelo momento com discrição, acompanho todos os protocolos sociais que a urgência exige: me vejo cordial, assertivo, cuidadoso, protetor. Mas, tal qual barragem erguida às pressas e desassistida em sua manutenção, com seus dejetos, disfarço minhas fraquezas e vulnerabilidades.
E fico me vigiando para que essa minha resistência não ceda em algum momento de distração e que possa ser útil, quando mais precisam de mão amiga. E foi esse estado de continência que me fez ver que meu ponto de fuga (de ruptura), meu calcanhar de Aquiles, são os rituais.
Se você resistiu e me leu até aqui, por favor, não ria por não me entender, tampouco desista agora. Estou ainda muito emocionado e gente emocionada fala muito e em desvario. Gente assim quer ajudar e acaba falando/escrevendo pelos cotovelos. O importante é saber que falta pouco.
E insisto: é isso mesmo que você leu e julga ter entendido: o que me surpreende e derrete as minhas reservas de sensibilidade são os rituais. São eles que me fazem chorar, que desatam os nós que retêm as águas lavadoras de minhas sensações. Detalhes que passam incólumes para quase todo mundo e a todo momento, são os que me escancaram em fraqueza humana e cedente. De repente, um acorde, uma fila performática, um composição de cores, uma sequência de gestos, ou mesmo alguém que chora com sinceridade perto de mim é o suficiente para abrir as nossas comportas e então a água há tanto represada vem, estoura barragens, vira cachoeira, lava o espírito.
Falo assim porque foi uma marcha desordenada que saiu de dentro do recinto do velório exibindo um caixão como uma Maria que não mais existia, diluída nas memórias compungidas, e tomou o rumo do cemitério, para os ofícios do sepultamento, foi nesse instante que deu-se a purgação desse escrevivente. Nesse momento é que me dei conta, pela primeira vez, de que a ventura de amá-la não finalizava, antes estava em seu estágio inicial. Eis aí o paradoxo: no fim é que se abrem as janelas para o flerte inefável da memória, a certeza de que tudo valeu a pena, porque, afinal, nada vale a pena, daqui nada se leva, apenas a beleza das coisas acontecidas e não esquecidas.
E foi assim que me abri - sincero - para recebê-la para sempre em minha vida, num amor que nunca professei mas que comungo desde então. Era preciso aprender com esses ritos de congregação; são eles que dão sentido ao que não sabemos expressar, que organizam o nosso caos interior.
Por isso chorei por ela, por nós, sem disfarces. Pela primeira vez.