O CRISTO DO BAIRRO. POBRE E DIGNO.

Já não o vejo, como estaria? Sempre o ajudei. Lamentava que fosse beber com o dinheiro dado por mim, mas tantos que teriam uma paz melhor, um teto, também bebem suas tristezas e depressões, as vezes diariamente, por que não ele. Para ele é sua fuga e quem sabe, alguma felicidade. Não há vício na miséria, ela já é a desgraça que justifica o álcool.

Vejo-o diariamente em minhas saídas e caminhadas..

Maltrapilho, esmulambado, com os cabelos densamente sujos, eriçados pela poeira acumulada dos chãos onde dorme, apontados para o céu como a pedirem que o leve, que faça cessar seu sofrimento.

Tem a voz grave e forte, alta, altíssima, com a qual contesta a tripudiação com que é acossado insistentemente por onde passa, um Cristo dilacerado a cada instante.

Por vezes calmo, não incomoda, só revida aos insultos que vai colhendo por onde passa, deixando seu odor de banhos nunca tomados, com seus muitos apelidos alvejado, usados para diminuir. Mas é um mártir de sua vida, nada o diminuirá, muitos se diminuem resignadamente sem estarem como um mulambo, e fazem com que fiquem diminuídos. São diminuídos em seus interiores, sabem que são. Basta correr os olhos por multiplicados cenários.

Ele tem rosto, mas não identidade, mas quantos não mostram sua verdadeira identidade, o fosso onde vivem, permeado de mal feitos e sentimentos baixos. É o louco do bairro que não fere, não expropria nem agride, nem pede para ser xingado. Existem muitos loucos “sadios” soltos pregando arranjos, e outros sujeitos a todos os vícios, neles afundados.

A última vez que o vi ao passar em frente a uma quitanda lá estava ele a pedir uma tangerina. O proprietário, suponho, da pequena quitanda entregou a tangerina, grande, mas como preço escorraçou-o como a um cão sarnento. E tantos que não valem um osso descarnado a se lamentarem do pouco que têm, e o pouco pelo que valem devia ser agradecido. É a pena merecida. Mas ele tem dignidade tão rareada hoje.

Do alto de sua dignidade como pessoa, embora com as vestes encardidas e engrecidas pelo volume de sujeira, esbravejou e gritava que o “caridoso” não prestava e como um David de Bernini flexionou o corpo, mão em riste empunhando a tangerina a buscar o alvo, o “caridoso” que não parava de insultá-lo. Mirava insistentemente.

Parei para assistir a cena como que chamado por seu conhecido timbre de voz.

Meu sangue fervente italiano que me levou a muitas contendas quando jovem, hoje dominado com muitos freios pela maturidade, mas ainda inquieto, mirava com ele aquele alvo merecedor de punição, inflamado e torcendo pelo sucesso. E veio o arremesso.

Minha vontade e sua mira frustraram-se, o alvo não foi atingido. O alvo me olhou e recebeu de mim, de meu olhar de censura, talvez a maior pena que possa ter aplicado mesmo como um julgador, censura implacável, um gritar mudo que foi sentido pelo apenado, que sentiu minha vontade de uma correção de outra forma não materializada. Abaixou a cabeça e se dirigiu para o interior da quitanda.

Onde anda o Cristo do bairro na semana de seu martírio?

Celso Panza
Enviado por Celso Panza em 06/04/2020
Reeditado em 18/08/2020
Código do texto: T6908429
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