A sombra do que eu fiz

Pai, eu não sabia o que iria acontecer. Se eu soubesse, o senhor acha que eu teria viajado para a Europa justamente nessa época? Eu teria cancelado a viagem, por mais que isso me doesse, era a minha viagem de lua de mel, mas, paciência, a gente teria tempo para ir lá depois, numa época mais calma. Eu juro, pai, que quando a gente tomou o avião para ir para lá a coisa ainda não estava tão feia assim. Havia já algumas notícias de que o vírus estava saindo da China e chegando à Europa, mas as pessoas ainda estavam vendo isso como uma ameaça distante. As cidades ainda não estavam paradas, não havia ainda quarentena, eu não tinha como adivinhar, pai, que o vírus já estava circulando e que a gente iria pegar!

Então a gente já estava contaminado quando voltou para casa, mas ainda não sabíamos. E como haveríamos de saber? Não tínhamos a tosse seca, não tínhamos febre, não tínhamos nada do que dizem que têm as pessoas que pegam o vírus! Se eu tivesse um desses sintomas, o senhor achar que eu teria ido ver o senhor e a mamãe, pai? Mas eu não tive nada, nem os sintomas de uma gripe normal, então eu não poderia saber que o vírus já estava comigo e que eu o estava transmitindo por onde andava e em tudo o que eu pegava – inclusive no senhor, para abraçar.

Talvez eu devesse cogitar, talvez eu devesse ter me informado que mesmo pessoas sem nenhum sintoma podiam estar com o vírus. Assim eu teria me precavido e esperado um pouco mais até visita-los. Mas eu não sentia nada, a não ser uma saudade imensa do senhor e da mamãe, então eu fui para a casa de vocês no dia seguinte à minha viagem, e foi então que eu os abracei e apertei e passei o vírus.

Mas isso eu só fui saber depois. Fui saber quando, nos dias seguintes, o senhor começou a ter os sintomas da gripe, só que não era uma gripezinha, e a gente teve certeza disso quando o senhor passou a sentir falta de ar e a gente precisou ir ao hospital. Lá eles fizeram o teste para saber se o seu caso era o coronavírus – e era mesmo. O senhor fazia parte do grupo de risco, era idoso e tinha pressão alta, então a situação era ainda mais grave, e dia após dia foi se agravando, até o momento em que o senhor faleceu. Foi tudo tão rápido, entre a minha volta para casa, a visita, os sintomas, a sua internação e então a morte.

Quiseram então entender como foi que o senhor tinha sido contaminado, se por acaso tinha viajado para a Itália ou outro país da Europa, mas o senhor não tinha viajado para lugar nenhum, quem tinha viajado fui eu, euzinha, a sua filha, ou seja, fui eu quem o contaminou, fui eu quem o matei. Foi o senhor quem me deu a minha vida e fui eu quem tirou a sua. Sem saber, dirão. Ah, mas isso não serve de consolo algum, eu deveria ter sabido, eu deveria ter me precavido, eu deveria ter pensado, mas eu achei que esse tipo de coisa não acontecia conosco.

Sinceramente, não sei o que fazer daqui para a frente. Eu posso viver 90, 100 anos, mas nem por um instante me livrarei da memória de que foi uma atitude irrefletida minha que levou à morte do meu pai, e que ele ainda estaria aqui e viveria mais uns bons anos se não fosse por minha culpa. Morrer no meio da pandemia é trágico de qualquer jeito, mas tinha que ser justamente pela minha ação? O vírus é invisível, eles dizem, não se sabe de onde o inimigo surge... Mas nesse caso se soube, o inimigo fui eu.

Eu, uma sobrevivente do coronavírus, uma sobrevivente que, sinceramente, preferia estar morta, porque uma morte de fato não deve ser tão ruim quanto a consciência que se atormenta pelo que não pode mais ser consertado. Na verdade, eu já morri também, já não há nada que eu possa conseguir por aqui, pois em tudo haverá a sombra do que eu fiz.

Pai, eu peço perdão, e o senhor pode estar certo que, se pudesse, eu trocaria de lugar contigo...

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 05/04/2020
Código do texto: T6907414
Classificação de conteúdo: seguro