DOR DE UMA VIDA

A dor às vezes nos tornam amargos ou melhores, tudo depende de como a recebemos. Há pessoas mais sensíveis à dor que a tomam como sua e não consegue distinguir a sua realidade da do próximo ou faz da sua dor algo intenso e incontrolável como se fosse o peso do mundo e há outras pessoas porém que ficam mais fortes com a dor, não se deixam abalar, não porque são insensíveis, não, mas é porque sabem que fardos todos temos e por isso levam os seus com maestria e sabedoria.

Às vezes me pergunto em qual desses modelos me encaixo, tento me controlar, tento mesmo, mas desde quando voltei a lecionar e fui traçando o perfil dos meus alunos, começou os meus “adoecimentos”. As mazelas deles, o pouco de esperança de alguns, a vida que se esvaia de outro, a violência verbalizada de muitas meninas, a arrogância de quem nada sabia só para se sobrepor para sobreviver ao meio, me deixou com medo no princípio, depois me senti penalizada, e, muito depois passei a ter um sentimento maternal, não sei... o problema é que passei a viver em prol dessa turma em especial. Me lembro que fiz um bolinho pra eles com guaraná, e olha que eram adolescentes de 14 e 15 anos, comeram até se fartarem. Com esse bolo ganhei a confiança deles, não sei se de todos, mas de uma maioria, pelo menos passaram a me respeitar mais, fui até paraninfa deles. E olha que entrei no meio do ano. Lá descobri que um aluno tinha câncer de pulmão, minha primeira grande dor, o olhava pesarosa, mas tinha esperança que ele iria melhorar. Um ano depois que essa turma concluiu o ensino fundamental, me veio à triste notícia que uma aluna estava mal, as meninas me ligaram assustadas, chorando, eu mais que depressa conversei com ela pelo WhatsApp, ela me disse que estava bem, foi nossa última conversa, na manhã seguinte ela morre de leucemia fulminante. Passou um tempo, me chamaram novamente dessa vez a mãe de outra aluna havia falecido. A garota ficou órfã. O que dizer? O que fazer? Como compreender os desígnios de Deus? Não tenho que compreender. Então continuo minha vida e minhas orações pela humanidade, e travando minhas batalhas internas de tentar compreender o incompreensível. A vida segue, mais um pouco e aquele outro garoto o com câncer de pulmão também morre, filho único, os pais não moravam juntos, a dor de cada um terá que ser consolada nos vazios de seus lares igualmente solitários. Nesse ponto já estou dando aula para outra turma na mesma escola, me envolvo com a história e os problemas de cada um, a vida segue, essa turma é mais tranquila, agora a outra toda problemática, meu Deus! Acho que vou ficar louca. A vida segue seu curso normal. A turma dos mais agitados acho que tem ciúmes de mim. A turma melhor é boa mas... sempre tem um mas... fim de ano chega e mais uma vez paraninfa da turma melhor, não que os outros não sejam, até hoje me veem e me tratam com respeito. Mesmo no meio do caos que era a turma ainda conseguia fazer algo por eles, mínimo, mas fazia. Me entristecia não fazer mais. O ano termina, novo ano à frente, notícias novas. Infelizmente tive que mudar de escola, onde eu estava fechou uma turma, não fiquei muito feliz com essa mudança. O novo sempre assusta. Fui lecionar em outra escola, duas turmas exemplares, uma turma mediana e uma turma onde todos sem exceção de nenhum eram problemas. Me adoeci mais, foi ficando difícil, a turma problema me sugava toda energia. Me lembro um dia que fui falar de Deus pra eles, eles ficaram no mais absoluto silêncio, os olhos deles encheram de lágrimas e eu chorei depois. Em uma das turmas exemplares tinha um aluno brilhante, não escrevia nada no caderno, mas tinha uma memória invejável, só que vivia mexendo com os colegas. Fui saber sua história de vida, como não chorar, como não sofrer? Nesse ínterim fiz uma cirurgia, daí a turma “problema” fechou. Fiquei sem uma turma. Como efetiva, tive que escolher outra turma, para não prejudicar uma colega que estava com a mãe doente, fui pra noite. Quanta frustração. Eu dava aulas para as paredes. Me senti a verdadeira mulher invisível. Um dia pedi para um jovem falar mais baixo pelo menos, o que ele me disse não cabe a mim nem verbalizar, ruminei aquelas palavras por muito tempo. Quanta angústia. Não queria ir trabalhar. O ano enfim acabou. Graças a Deus. Novo ano começando. Ano de 2018, não por isso, pensei que seria melhor, não tinha turma suficiente no horário que eu queria, tive que completar de manhã. Assustei demais, as salas cheias, os alunos, não os culpo, não tive tempo de os conhecer, a doença me dominou, sai correndo da sala. Desci as escadas transtornada, de olhar para alunos tinha medo, o pânico me dominou. Estou sem lecionar até hoje. Escola é para mim um cenário de terror. Não sou a professora brilhante e que levou muitos alunos ao sucesso. Antes dessas histórias eu era outra quando voltei no mundo “globalizado” me assustei muito. Não sei o que aconteceu comigo. E hoje ainda fico sabendo que perdi mais um aluno, lá da escola da turma melhor que fui paraninfa deles também. Morreu de leucemia fulminante. Hoje sinto a dor dos sensíveis, minha dor é grande. Queria poder fazer algo, mas diante da morte cabe a mim rezar como fez Maria aos pés da cruz de Jesus, como fez Maria ao receber o filho morto em seus braços, como fez Maria ao ver sepultarem seu filho único. O silêncio de Deus nesse momento é sufocante e Ele chora a dor de ver os seus que sofrem. Caiba terra a lágrima do Pai e a dela se junta a minha. Hoje entendo os meus “adoecimentos” nunca fugi da luta, somente não posso mais suportar o sofrimento alheio sendo impotente. Queria, mas o incompreensível não cabe a mim. Não me julguem. (Tributo os meus alunos falecidos)