Foi de repente
Foi de repente. O velho estava à calçada de casa, sentado aparentemente deitado sobre uma galante cadeira de balanço, roncando baixo, que era para não acordar o silêncio da rua. Foi de repente. O frio estava gelado. Veio vindo, não se sabe de que horizonte, uma mosca andarilha e lhe pousou bem encima do nariz, estendeu-se, seguidamente também dormiu. Foi de repente. Ainda não era madrugada não. Um carro preto, à baixa velocidade, interrompendo o ronco e o silêncio, ocupou uma banda da estreita rua. Era uma viatura de polícia, dessas enfeitadas com giroflex e sirene, a ocupar-se do itinerário procedimental, aproximando-se da calçada onde o velho cochilava em silêncio, na companhia da mosca andarilha. Chegaram-se ao velho, que, fatigado das canseiras dos dias, não resistiu ao chamado — coisa que a mosca andarilha, ainda jovem, ligeira e possuidora de asas, não o fez. Voou para longe do alcance da Lei. Foi de repente. Foi assim de repente. Mas o velho não tinha asas. Ficou, a ouvir dos agentes da lei:
— Cidadão, tá sabendo do decreto?
Ao que o velho, ainda cheio de cochilos, respondeu:
— Não, senhor.
— Mas e esta frieza? dizem que faz mal à saúde ... — insistiu a Lei.
— É, dizem que viver também faz mal à saúde... — concluiu o velho.
Foi de repente.
Foi de repente. Joãozinho acordou de seu sono intranquilo. Foi acordando e levando a mão ao queixo. Foi de repente.
— Mamãe! Mamãe!
— Joãozinho quer comer, perguntou-lhe a mãe.
— Mamãe, meu dente... meu dente... dói!
— Joãozinho quer comer?
— Se eu comer passa, mamãe?
— Passa, sim, Joãozinho.
Jaoãozinho comeu um prato de papa inteiro, mas a dor de dente não passou. Foi de repente. Joãozinho teve a ideia:
— Mamãe! Mamãe! E se eu jejuar, a dor de dente passa?
Foi de repente. O velho, a mosca, o Joãozinho, a mãe. Foi de repente. Perceberam que viver talvez faça mesmo mal à saúde.