EU NO ESPELHO

Desde o dia dez de março estou experimentando o tal confinamento alcunhado de “Isolamento Horizontal”. De alguns dias para cá, “especialistas” das várias instâncias do governo, saúde, economia e, principalmente da mídia, cuidam de emitir opiniões, corretas ou não, despejando sobre a cabeça da população desarmada as mais diversas notícias que dizem ser “informações” a respeito da crise sanitária, o coronavírus.

Nesse burburinho espalha-se, de maneira perversa, o espírito nefando do medo. Medo que não é só do coronavírus, mas de tudo o que possa vir a ser afetado por sua propagação nefasta, alhures programada e engenhosamente anunciada por jornalistas e apresentadores que se desmancham em esgares faciais e arquiteturas vocais de arautos da verdade.

Gente que nunca deveria ter nascido aproveita-se da insanidade cultivada para emergir antagonismos gerados nos escaninhos políticos, partidários e ideológicos, numa ambição desmedida e desumana pelo poder. Integrando esse embate maligno, na linha de frente, integrantes do que ainda chamam de Poderes da República.

Governadores, prefeitos, parlamentares, juízes e outros “servidores públicos” de estofo legal alardeiam leis, decretos, portarias, atos e demais títulos do papelório oficial para coibir, bloquear, restringir e confinar as pessoas comuns, inclusive impedindo-as de buscar, no trabalho, os recursos para o pão de cada dia para si e seus dependentes. Enquanto isso, especialistas de várias instâncias discutem seus antagonismos diante dos atos e fatos.

Foi nesse diapasão do pensamento que, na execução da rotina de confinado, resolvi fazer a barba já emendando com a encanecida cabeleira através das costeletas.

Já no banheiro, com a aparelhagem da ceifa preparada para entrar em ação, deparei-me com uma figura lá dentro, no fundo do espelho, postando-se à minha frente. Olhando, fixamente, para mim, parecia não estar entendendo bem a cena desconhecendo totalmente o cara do lado de cá. De repente tive uma espécie de safanão mental e comecei desencadear alguns pensamentos que a visão daquela figura despertou. Foi, então, que perguntei a mim mesmo: Afinal, quem sou eu? Eu sou esse cara ou esse cara sou eu?

Intrigado com o questionamento, repentinamente, vi-me na Grécia Antiga, diante do portal do Oráculo de Delfos. Bem diante dos meus olhos, imponente, o famoso dístico: “Homem conhece-te a ti mesmo” e conhecerás os mistérios dos deuses”! A imagem parecia estar vindo do lado, de dentro do espelho, em que estava o outro eu.

Olhando para o Oráculo perguntei: Quem sou eu? Nem precisei esperar muito. A resposta veio tal qual um filme mostrando cenas que se desenrolaram na minha vida desde os dias mais distantes na lembrança. “Você é aquilo em que acredita”, disse uma voz bem dentro dos meus miolos. Em seguida os pensamentos desaguaram aos borbotões...

Minha infância foi desenvolvida no seio de uma família tradicional, religiosa, perfeitamente enquadrada nos ditames da sociedade da época, o que incluía o respeito ao disposto na legislação, na moral e na ética. Assim, cresci acreditando nas disposições legais, nas instituições, nas regras comuns e, principalmente, nas pessoas guindadas aos cargos relativos à representação pública e à condução dos destinos do país, aquelas a quem fomos ensinados a respeitar como “autoridades”.

Minha juventude, igualmente, foi lastreada nesses mesmos princípios, naturalmente ajustados aos avanços da sociedade, contribuindo para adequação no comportamento e nas relações com a vida, as pessoas, as coisas e as normas em geral. Em consequência, na vida adulta, a noção de responsabilidade, a correção nas relações, a dedicação aos estudos, o envolvimento com o trabalho e, principalmente a noção arraigada de deveres e direitos ficaram como alicerces para o norteamento dos anos que se seguiram.

Hoje, diante do espelho, olhando o sujeito do outro lado, procuro aquele que já não vê mais a autoridade naqueles que se inserem nesse estamento. Gente corrupta, distanciada dos mínimos princípios de lisura, encastela-se nos píncaros das instituições para lesar, promover desvios, falsear, atuar em causa própria, destruir reputações, e outras atividades inescrupulosas, na maioria das vezes, atacando inimigos na ideologia, com as mais sórdidas das atitudes, muitas vezes, pessoas que desenvolvem com seriedade suas atividades públicas, em favor da coletividade e do país.

Ainda, diante do espelho, com a espuma do sabão descendo pelo ralo da pia, meio dissolvida na água que descia da torneira, imaginei a ida, também pelo ralo, de boa parte das coisas em que fui induzido a crer durante todo esse tempo e, principalmente, de como foram formados os meus arquivos mentais ao longo da vida...

Caraca! O cara do espelho quase nada mais tem a ver comigo! Eu não sou mais eu!

Neste exato momento, não mais posso acreditar no mesmo conceito de “liberdade” que cristalizei, desde os bancos escolares, ao estudar a História, com seus heróis e vultos registrados. Governadores, prefeitos, juízes e outros servidores institucionais ordenam confinamentos, restrições ao ir e vir, impedimentos ao trabalho, à produção, ao empenho pelo sustento das pessoas como se a ação do coronavírus fosse regulada por atos da legislação humana, nos seus diversos níveis. Do alto dos píncaros em que se encastelam vários deles aparecem, filmados nas telas da tv e nas redes sociais, esbravejando seu discurso de ódio contra os cidadãos afetados que protestam pelos prejuízos a que foram submetidos.

Afinal, de acordo com o andar da carruagem, em que dia, data, e hora, o coronavírus irá cuidar da sua insignificância e obedecer às disposições legais, ditadas pelas "autoridades", para que as pessoas possam voltar a ser o que eram antes, simplesmente livres como estabelece a Constituição?

Terminada a barba, o sujeito do outro lado do espelho aparentava ser outro, não o mesmo que inspirou esse tema. Mas, antes de desaparecer, deixou algo intrigante para digerir nos dias que se seguem:

Bem! Você já sabe que a voz corrente dá a entender que as autoridades serão forçadas a verticalizar o isolamento favorecendo os indivíduos abaixo de sessenta anos de idade. Os demais, essa velharada improdutiva, religiosa e conservadora, em sua maioria, composta por aposentados, consumidores dos recursos do Serviço Público, deverá permanecer em “isolamento horizontal”, não se sabendo se o tal coronavírus respeitará as disposições da burocracia oficial. Assim, vá modificando o seu esquema de crenças e adaptando o seu breve futuro a uma espécie de confinamento...

Com esse aviso do cara do espelho, eu não sendo mais eu mesmo, decidido a rever minhas crenças, virei as costas, enxuguei o rosto e vim sentar-me diante do computador para difundir essa experiência. Concluída a postagem, vim para o “Recanto das Letras” compartilhar com os colegas que ainda gostam de ler e escrever, um bocado de gente dessa velharada dispensada candidata à oclusão sem tempo declarado...

Em seguida, dei um giro no Zapzap, peguei um livro na estante do escritório e, como fazia calor, fui para a varanda ler para distrair e tirar minhocas da cuca. Curiosamente o livro era um dos favoritos na infância do meu ex-eu. O título: “Alice no País do Espelho”, de Lewis Carrol.

Amelius

Sobradinho, DF

02-04-2020

Amelius
Enviado por Amelius em 02/04/2020
Reeditado em 02/05/2020
Código do texto: T6904733
Classificação de conteúdo: seguro