Cotidianos X - Na carona do Corona

Como de costume, às 16:40, mais ou menos, meu amigo de longa data, o Sócrates, que cochilava no canto da sala, levantou, sentou à minha frente e ficou me encarando. Tirei a vista do livro, olhei para ele e falei:

-Calma, parceiro! Assim que terminar essa página, eu começo a te pentear.

O Sócrates é assim... Sistemático! Se não pentear o cara, e não o deixar elegante, ele não sai de jeito nenhum.

Terminei de ler a página, peguei o pente e comecei a penteá-lo, no capricho. Depois, peguei umas ligas e amarrei o cabelo do cara. Tipo samurai.

Dei uma batidinha na bunda dele, como sempre; e o cara, com um pulo, ficou em pé, abriu a boca como se sorrisse, e ficou lá, todo pimpão, com o rabo abanando. Coloquei a coleira no sacana e fomos fazer a nossa caminhada de toda tarde.

A rua do meu prédio, nesses tempos de COVID-19, ou melhor dizendo, de “corona vírus” ou vírus chinês, ou ainda, quarentena, estava deserta. Não tinha vivalma!

Olhei para o começo da rua: NINGUÉM!

Olhei para o fim da rua: DESERTO!

Ajeitei os fones de ouvido, selecionei uma música, instiguei o Sócrates, e lá fomos nós... Os únicos seres vivos na rua desolada de um bairro fantasma.

O Sócrates, satisfeito, levantava a cabeça e farejava o ar... Contente da vida! Nenhum outro cachorro à vista... Ele se sentia o dono da rua! Eu, me sentia num vilarejo da série “The Walking Dead”. A qualquer momento, apareceria uma moita de capim seco bolando na rua, ou quem sabe?, um zumbi!

Dobrei uma esquina, dobrei outra, e nem uma vivalma sequer... Tudo deserto!

Passei pela pracinha do bairro e olhei consternado para o parquinho.

Na ausência das crianças, lentamente, o vento balançava o assento do balanço vazio.

Na gangorra, o peso da solidão encostava uma das pontas no chão; na outra ponta, a ausência do riso infantil, levitava no alto.

No campinho, um cão vadio dormitava na marca do pênalti.

Nos prédios ao redor da pracinha, os pais, provavelmente, estariam ficando loucos com a energia acumulada das crianças.

Vendo aquele cenário, pensei: “Depois dessa quarentena, professores infantis e cuidadoras de crianças nas creches, deveriam ter o salário quintuplicado!

De repente, lá no começo da rua, o ronco do motor de uma motocicleta. Meus olhos míopes estreitaram-se tentando distinguir os vultos montados na motocicleta. Eram dois indivíduos. Bonés com a aba caindo sobre os olhos, trajando bermudas estampadas e camisas de time de futebol. Mal sinal!

Meu coração pós-infartado aumentou a pulsação em pelo menos uns sessenta por cento. Fiquei com a certeza absoluta que o meu “stent” não iria aguentar o fluxo sanguíneo e a sudorese do estresse ensopou o meu pescoço.

O meu amigo Sócrates, sentindo o cheiro do meu pânico crescente, solidário, arreganhou os dentes e eriçou os pelos para a dupla da motocicleta.

Mas o meu amigo, em caso de confronto, pouco poderia fazer. Afinal, o Sócrates, apesar de valente e destemido, é um “Lhasa Apso”. Um cão de pequeno porte.

A motocicleta foi se aproximando... V.a.g.a.r.o.s.a.m.e.n.t.e!

Olhei para um lado e para o outro... NINGUÉM! Na rua, somente eu, o valente Sócrates, e os “malas” da moto.

Eu tenho um cacoete estranho. Quando estou extremamente nervoso, eu espirro muito.

A motocicleta diminuindo a velocidade... O carona da moto levando a mão para a cintura... Eu, com os nervos à flor da pele, mudando de calçada... O nariz coçando furiosamente e a glote quase entupindo...

Dei o primeiro espirro. A motocicleta reduziu mais ainda a velocidade... Os “malas” levantaram as abas do bonés...

A minha adrenalina foi a mil e dei o segundo espirro... Desta vez acompanhado de uma tosse escandalosamente comprida!

A motocicleta estancou e os “malas” ficaram tensos.

Aí, meus amigos, o meu nervosismo foi ao extremo. Comecei a espirrar e tossir desbragadamente... Uma nuvem de perdigotos formou-se à minha frente.

Perdi completamente o controle. Espirrava, tossia e fungava tanto, que achei que fosse morrer.

O Sócrates, encarando os “malas”, latia furiosamente!

Desesperado, tentando controlar os espirros, a tosse, e buscando forças para tentar correr dos possíveis assaltantes... No meio da nuvem de perdigotos, ouvi o motor da motocicleta roncar com força. Com os olhos cheios de água, tossindo e espirrando, tive a impressão de ouvir, no meio do ronco da motocicleta, o carona gritar:

-ACELERA, MANO! ACELERA QUE O VENTO ‘TÁ CONTRA NÓIS!

E foi assim... Desse jeito! Que eu peguei carona no Corona, e me livrei de um possível assalto!

João Pessoa/PB
Abril-2020