A Dúvida

Comecei a minha vida de adulto numa total oposição à minha escrita. E o caso era compreensível; caligrafia de gosto discutível… mais para o discutível que para o aceitável, relembro da dificuldade em ler uma ou outra palavra em que a pressa se esquecia de toda a aprendizagem escolar. Ainda hoje estou para saber o que a minha esposa, na altura namorada, viu naqueles gatafunhos de difícil interpretação para não os criticar, enquanto ela, verdade seja dita, com uma caligrafia perfeita e discurso fluente se devia ver em papos de aranha para decifrar tal emaranhado de rabiscos. É caso para dizer que o amor tem loucuras que até a própria loucura desconhece…

Concordando com essa ideia o meu amigo Antero, comentava, um pouco à laia de dor de cotovelo, que ainda hoje não encontrou resposta para certas atitudes femininas que o deixam boquiaberto. Serve para o caso, dizia ele, a preparação pro bailarico.

Em frente ao espelho ensaiamos o nosso melhor sorriso, numa atitude firme mas delicada, deixando a eleita rendida à nossa pose cavalheiresca. Confiantes, depois do banhinho tomado, bem vestido, barbinha bem escanhoada e aquela água-de-colónia capaz de derreter o mais duro coração feminino, condescendemos que ela troque uns passinhos com a nossa pessoa.

Com a sala repleta os deuses parecem estar connosco, a troca de olhares, são indícios que prometem. Ao discreto convite ela sorri, levanta-se e vem em nossa direcção. Na precisa altura em que lhe fazemos uma pequena vénia, ela prossegue como se fossemos invisíveis e entrega-se a um outro mais alto que estava por detrás de nós, deixando-nos numa posição de tal desconforto que só nos resta riscá-la da nossa lista.

Às arrecuas saímos do recinto, antes que algum amigo nos tope e passemos a ser tema de chacota, não tanto pela tampa, mas pelo requinte como foi dado. Uma cerveja passeia agora na nossa mão, nervoso, nem nos apetece bebê-la. A raiva é tanta que nem nos apercebemos que uma outra pequena nos faz olhinhos.

Olhamos para o par. Não para ela, que morreu ali mesmo, mas por quem fomos trocados. Com um esgar a precisar de controlo, lançamos a nossa depreciativa observação: Guedelha com todo ar de viveiro de piolhos, vestuário meio andrajoso, ar enfezado, meio amarrecado, gânfias a precisar de limpeza e aparação, rabo sumido, cara cheia de acne, disputando o espaço com uns pêlos mal semeados, e mesmo assim… A nossa vontade é ir ao quadro e desligar a luz…e acabou-se a festa.

- É assim – retoma-, vá a gente entendê-las! Preferem cinco centímetros a mais de osso descarnado aos nossos cinco quilitos a mais de boa nutrição. Abano que sim com a cabeça, não tanto para lhe elevar o ego, mas porque também tenho momentos que não as chego a entender. Não como o meu recalcado amigo, que diz que ela morreu, mas que volta e meia, ressuscita o episódio não sei se ávido de apoio masculino, se para denegrir a imagem daquele esqueleto ambulante tido, vejam lá a presunção, como seu rival. O certo é que eles vão lá levando a sua vidinha, enquanto o meu amigo se rói de inveja.

Mas…calma, calma que eu sei que não se começa um novo paragrafo com um mas, porém, é para retomar o início da história que deixei em banho-maria quando dizia que o amor tem loucuras que a própria loucura desconhece, quando ela se lembra, passados tantos anos, dos erros de português e frases mal encavalitadas.

E se por acaso eu duvidar, agora que sou um convencido de que escrevo umas coisas, ela tem as provas, atadas com uma fitinha cor-de-rosa, com que me ameaça. Não sei onde moram as ditas, que ela guarda como se fosse um tesouro, para mim serão mais granadas prontas a explodir se me atrever a saltar fora dos eixos. Assim, só me resta enaltecê-la sempre que alguém gosta de algum texto; com o meu trivial: “A ela o devo!” Ela incha e, eu sempre no fio da navalha, rezo para que o juizinho nunca me falte pois não sei do que ela seria capaz.

Aqui há dias, depois de ler e reler sei lá quantas vezes as minhas “lérias”, e porque estava muito bem-disposta saiu-se com esta: “Ainda dizem que burro velho não aprende línguas!”. Na minha santa ingenuidade, sorri e dei um puxão para cima ao meu ego. Desfrutei por momentos o reconhecimento da minha cara-metade sobre a minha genialidade, mas…uma maldita dúvida passou a atormentar o meu espírito: burro velho?

A noite foi de insónia, sempre a matutar no que entendi como um elogio, mas depois de muita reflecção, aquela de burro não me soava bem e como se não bastasse, acrescenta-lhe velho. Como se diz por aqui; eu sei que não vou para novo, mas caramba também não é preciso ofender. E depois, alguma vez me viu zurrar para me chamar de burro, ainda por cima, burro velho? Isto nas mãos de um bom advogado era caso para…mas e depois? Bom, o melhor é esquecer, mas que ela merecia um bom par de coices, lá isso merecia!

Lorde
Enviado por Lorde em 01/04/2020
Reeditado em 05/11/2020
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