A ARTE DE COÇAR OS TORNOZELOS

Ficar em casa não é comigo. Sempre fui de andar muito por aí, pelos matos, pelos rios e montes. E sempre tenho o que fazer, mesmo vivendo no isolamento voluntário.

E hoje como sempre levantei cedo, procurei umas meias limpas e nada achei, a não ser umas meio velhas no fundo da gaveta. Só havia usado aquelas meias uma vez, depois lavei-as e guardadas ficaram até hoje. São muito largas na parte de cima, de modo que não ficam firmes no pé. Da primeira vez eu mal dava uns passos e elas iam para o fundo do sapato.

Mas tive então uma ideia. Coloquei as meias e amarrei por cima, nos tornozelos, umas borrachinas para deixá-las firmes. E deu certo. Andei, andei, fiz coisas o dia inteiro e as meias lá estavam firmes em seu posto.

Mas o dia foi findando e eu já comecei a sentir que as borrachas estavam apertando um pouco. Ansiava pela hora de tomar meu banho e dar as meus pés a sua merecida folga.

Depois de tudo é que vi as marcas nos tornozelos. E sem as borrachas o que passei a sentir foi uma forte coceira em ambos os tornozelos. Isso foi agora há pouco, pois ainda está coçando. E olha que coça mesmo.

E vou coçando, pois coçar é comigo mesmo. A mania que normalmente tenho é de coçar a cabeça, os olhos, levar a mão à boca, ao nariz, às orelhas. Mas ultimamente eu tenho relutado em fazer tais gestos, tão somente por estarem proibidos, já que são os dedos que conduzem os vírus às cavidades do corpo.

Acho que isso é medo, medo de ser contaminado. Nessa pandemia em que não se pode mais nem coçar o olho, os dedos querem uma compensação, e lá vão as unhas para coçar outro lugar mais seguro. Deve ser por isso que os tornozelos coçam tanto.

De qualquer forma, não vou mais usar aquelas meias.

Egon Werner
Enviado por Egon Werner em 31/03/2020
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