SEMPRE SÃO VICENTE

SEMPRE SÃO VICENTE

Saímos de São Vicente, mas São Vicente não sai da gente. Raízes são raízes, coisas que nos amarram, nos fixam à terra da qual nascemos. Lembranças de infância e adolescência inolvidáveis, que carregamos por toda nossa existência. Qual aquelas plantas que colocam em vidros com água flutuam e mostram suas raízes, assim somos nós. Flutuamos pela vida, mas nossas vivências nos guiam e servem de contrapeso para que não soframos um naufrágio. Hoje lembro de coisas que parecem nunca terem existido.

O MANGUEIRÃO

Ao lado da linha férrea, hoje linha do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), na altura da Rua XV de Novembro, ficava o Mangueirão. Era uma grande área rodeada por uma cerca de curral alta, de madeira, onde o gado destinado ao abate ficava após ser desembarcado do trem da antiga RFS (Rede Ferroviária Sorocabana) que os trazia. As composições com muitos vagões lotados de bois e vacas ficavam aguardando o desembarque por horas, o que era uma atração para a garotada. Sem a consciência ecológica de hoje, apreciar os pobres animais confinados em vagões de madeira tal sardinha em lata era uma distração. Muitas vezes um animal fugia o desembarcar e causava correria na multidão que observava. E recapturar o bicho era difícil, as vezes demorava horas.

A RUA BENJAMIN CONSTANT

A Benjamin Constant era uma rua de terra, com pouco movimento, ideal para jogos de bola, rodar pião, bola de gude, andar de bicicleta, bike é pura frescura dos dias de hoje, e outras atividades hoje substituídas por vídeos games, celulares, tablets, etc. A maioria estudava no Grupão na parte da manhã, as tardes era só brincadeira. Vira e mexe aparecia uma mãe brava e levava o filho para casa fazer lição ou almoçar, no fim da tarde chamavam para tomar banho. Às vezes saia uma briga e lá ia o garoto chorando para casa. Logo apareciam as mães, cada uma defendendo seu rebento. Os pais tinham umas regras consideradas totalmente idiotas nos dias de hoje: apanhou na rua, apanha em casa; sempre revidar a qualquer agressão, verbal ou física; não levar desaforo para casa; ganhar uma briga era motivo de elogios. As mães não viam assim: consolavam os filhos; pediam desculpas às outras mães, acolhiam os perdedores e criticavam os agressores. Algumas seguiam as orientações dos maridos e brigavam com as outras mães. As ruas eram os locais onde as crianças se socializavam a aprendiam a conviver com pessoas de todos os tipos, faziam amizades que perduravam por toda a vida e inimizades que nunca iriam desfazer.

ESFIHA, O QUE É ISSO?

Na mesma calçada da Rua Martim Afonso em que ficava a Sorveteria São Paulo, havia uma pastelaria de um chinês. Um dia, ao pedir um pastel, vi, na vitrine sobre o balcão, uma espécie de bolo de massa assada, fechado. Perguntei o que era e o chinês respondeu: “- Esfirrará comida turcará.” Pedi uma para experimentar e na primeira mordida virei fã da nova iguaria. Fui muitas e muitas vezes com meu amigo Detter comer esfiha. O recheio de carne com pimentão e tomate era molhadinho, uma delícia. Nunca comi esfiha igual.

CHINELO DE DEDO

Lá por 1960, apareceu uma moda que iria se perpetuar: o chinelo de dedo de borracha, importados e usados na praia por pessoas de fino trato. Contesto que a Havaianas inventou esse tipo de chinelo em 1964, conforme Atestado de Registro de Patentes. Muito antes disso, eu e meus amigos, moleques de rua, íamos à Praia do Itararé roubar chinelo de dedo, pois não havia para vender no comércio. Funcionava assim: em uma primeira observação, víamos onde estavam pessoas que usavam os poucos chinelos de dedo. Esperávamos a pessoa ir ao mar e então um de nós passava, encaixava os pés no objeto de desejo e saia andando normalmente. A gente se afastava e, então era a vez de um de nós que não “adquirira” o chinelo, apanhar o seu. Mas isso durou até o dia que o Zé Guardinha encaixou um chinelo nos pés e saiu com o monte de roupas a reboque. A dona havia passado uma cordinha em todos seus pertences e ninguém havia visto. Zé Guardinha soltou os chinelos e, com a mulher gritando, saiu correndo. Voltamos para a casa, passamos um bom tempo sem ir à Praia de Itararé. Nunca mais roubamos chinelos de dedo. Hoje só se fala Havaianas.

Paulo Miorim 31/03/2020

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 31/03/2020
Reeditado em 22/09/2020
Código do texto: T6902343
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