A VIOLETA DA VARANDA

O relógio do computador está indicando 23h08min do dia trinta de março de dois mil e vinte. O sono teima em não chegar e a cabeça fica procurando algo para dissipar o pesadelo que insiste em ficar rondando meus sentimentos... Minha mulher já está no terceiro sono e, sozinho, com a paciência esgotada pelo excesso de notícias tétricas, busco socorro na suavidade do teclado e na tolerância pacífica do Word recebendo, sem reclamar, as idas e vindas, os erros e correções que vão se sucedendo, enquanto os miolos cuidam de fomentar algum pensamento para transformá-lo em texto.

Pensei em escrever algumas linhas sobre minhas relações com as plantas que cultivo na área externa e nas muretas da varanda. Olhei para os vasos, para as estantes e para as paredes, mas não senti inspiração ao ver o quanto a chuvarada maltratou as folhagens e a floração. O que antes fora um festival de pétalas e cores estava transformado em amarelões e restos de flores murchas, meladas pela chuvarada incessante que desabou neste mês de março.

Como estamos vivenciando essa praga de coronavírus estou relacionado na pecha de idoso, literalmente incluído no rol das pessoas que as decisões mandatórias destinam ao famigerado “isolamento social”, “quarentena” ou outra denominação qualquer destinada à restrição da nossa liberdade. Assim estou confinado ao ambiente domiciliar, juntamente com minha esposa, amiga inseparável e também minha enfermeira.

De cima dos meus quase oitenta e dois anos de vida, num retrospecto, desde o início da observação e compreensão das coisas, nunca tive oportunidade de vivenciar situações como as que hoje experimento. Lembro-me dos tempos da Segunda Guerra, dos pracinhas do Segundo Escalão marchando pela Presidente Vargas, rumo ao Cais do Porto, para embarque com destino ao combate na Europa...

Daquele tempo, eu criança, guardo a lembrança de várias situações que, em razão do “esforço de guerra”, empurravam a população para casos de leve restrição. O racionamento era uma delas e para que se pudesse comprar pão, açúcar, carne e outros gêneros, era necessária apresentação de um cartão onde o comerciante anotava a quantidade autorizada para cada pessoa. Corria a década dos anos quarenta...

Gasolina era coisa rara e, em razão disso, as pessoas mais abastadas mandavam instalar, em seus carros, um dispositivo chamado de “Gasogênio”. Eram dois tubos de metal, com cerca de um metro de altura, cada, instalados na traseira do veículo. Um deles era atulhado de carvão e o outro, de uma solução de água com carbureto. Para fazer o motor funcionar o motorista precisava perder um bom tempo na operação de abastecer os tubos, atear fogo no carvão e ficar abanando até atingir uma temperatura que pusesse a água para ferver e, assim, produzir um gás que faria funcionar os cilindros tal qual o combustível convencional. Isso demorava quase uma hora, desde o início até a saída com o veículo.

Outro contratempo ficava por conta do “black-out”. As cidades e residências litorâneas eram obrigadas, por força de lei, a manter as luzes apagadas a partir das dezoito horas, para dificultar a visão por submarinos inimigos que porventura adentrassem às águas nacionais pela Baía de Guanabara.

Naquela época eu morava no “Edifício Guaracá”, na Praia de Botafogo, bem em frente à estátua do Almirante Tamandaré. Era uma pena ver as luzes da praça apagadas e, em casa, as cortinas escuras nas janelas que davam para a rua.

De qualquer modo, apesar da guerra e das consequências que respingavam sobre nós aqui no Brasil, pairavam outras situações constrangedoras e perigosas. A tuberculose, a hanseníase, a sífilis, o tifo, o diabetes e dezenas de enfermidades complexas para as quais não existiam os recursos médicos e farmacêuticos de hoje. Os hospitais e demais recursos para atendimento ao povo eram bem frágeis comparados aos atuais.

Independente de tais entraves lembro-me perfeitamente do Dr. Rocco que, em razão de sua função como servidor público, era nosso “médico de família”. “Naquela época, no Rio de Janeiro, tínhamos na Prefeitura, o ‘SAMDU - Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência”. Como o próprio nome indica em caso de urgência, o chamado era atendido imediatamente. No entanto, mesmo sem a referida urgência o médico, em ambulância oficial, mensalmente visitava nossa residência, examinava cada membro da família prescrevendo, se necessário, medicamentos ou exames, tudo transcrito para um relatório do arquivo oficial.

Bem! Esse preâmbulo é para dizer que mesmo em situação de guerra, nossa vida jamais teve qualquer tipo de ameaça às liberdades, principalmente em uma época em que nunca se havia ouvido falar em “direitos humanos”... Os idosos eram vistos como pessoas vividas, conselheiros, dotados de sabedoria e mansidão, para os quais o respeito, a consideração e o carinho eram lugar comum.

Hoje, o noticiário corrente dá conta de diversas ações oficiais empreendidas por governadores, prefeitos, juízes e quetais, gente envolvida no emaranhado institucional que atenta diretamente contra as tais liberdades constitucionais.

A tão decantada Constituição, ao que parece, tem que ser obedecida apenas por aqueles que não fazem parte dos estamentos de poder, que se julgam com autoridade para bloquear estradas, proibir manifestações, fechar estabelecimentos comerciais, multar, expropriar produção de fábrica de respiradores, impedir o ir e vir das pessoas obrigando-as a alterar suas rotinas, dentre as quais se encontram os meios de ganhar os recursos para saldar seus compromissos e de seus dependentes e um sem fim de arbitrariedades. Governadores e prefeitos com seus decretos, portarias e atos oficiais atiram-se contra seus próprios eleitores num redemoinho político partidário onde impera a ânsia pelo poder.

Nesse redemoinho a mídia, com o título nobiliárquico de “Mecanismo Formador da Opinião Pública”, despeja nos vídeos e auto-falantes chusmas de notícias desencontradas confundindo e espalhando medo e apreensão.

Tais notícias, em fornadas contínuas, resultam de opiniões discordantes proferidas por cientistas, especialistas e políticos.

Os primeiros antagonizam dados números e explicações de laboratórios, testes, diagnósticos, estatísticas, etc...

Os segundos se esvaem em proposições divinatórias a respeito do que irá ou não acontecer no futuro diante do que já está acontecendo agora, sobretudo nos campos econômico e social. Aqui divergem opiniões eivadas de conteúdo ideológico partidário.

Os terceiros, aproveitando-se do furdunço informativo, sedimentados na ideologia, apostam no quanto pior melhor, fazendo das tripas coração visando à derrubada do governo central.

Mas, apesar de tudo, o que parece estar sendo delineado é um estado de coisas em que os idosos passarão a ser discriminados. Por terem facilidade na contaminação e, com isso, lotar hospitais e leitos de UTI. A voz corrente dá conta de que o “Isolamento Horizontal” para os indivíduos abaixo dos sessenta anos será aliviado passando a vigorar, para eles, o “Isolamento Vertical”. Os idosos, contudo, deverão permanecer sob confinamento, restritos às quatro paredes de suas mansões ou barracos, isolados de familiares, amigos e restringidos no seu “direito de ir e vir”, violado por disposições de agentes do Estado.

Afinal para que servem os velhos, em sua maioria portadores de algum tipo de deficiência? Opiniões de especialistas configuram essa faixa da população como constituída por indivíduos improdutivos, apenas consumidores substanciais dos recursos dos órgãos de assistência pública. Pululam, na Internet, notícias a respeito de uma Agenda que trata de um tema intrigante: “A Despopulação Mundial”. Os idosos, miseráveis, inválidos e outros menos saudáveis estarão na linha de frente dessa intenção que é uma disposição de abrangência mundial...

O link abaixo, com o tema sob diversos enfoques, poderá ser ilustrativo alertando sob o ditado popular que diz: “Vento que venta lá, venta cá”.

https://www.google.com/search?rlz=1C1GGRV_enBR780BR780&sxsrf=ALeKk01RAjuz6Pnp6V4VqAvYPqamllH3GQ%3A1585657438647&ei=XjaDXpyQJ-ic5OUPvJqc-AI&q=despopula%C3%A7%C3%A3o+mundial+3%2F4&oq=despopula%C3%A7%C3%A3o+mundial&gs_lcp=CgZwc3ktYWIQARgAMgQIIxAnMgIIADoECAAQRzoFCAAQgwE6BwgjEOoCECc6BAgAEEM6BAgAEAo6BwgAEAoQywE6BggAEAoQHjoECAAQHjoICAAQBRAKEB46BQgAEM0CUOCrCVjt2wlgpvEJaAFwAngEgAGVAogBgCCSAQYwLjIyLjOYAQCgAQGqAQdnd3Mtd2l6sAEK&sclient=psy-ab

Pelo que podemos constatar, diante do emaranhado informativo e das disposições já adotados pelo próprio Estado, é possível admitir que nos dias atuais vivamos uma rotina mais agressiva e perigosa do que a dos tempos da guerra em que o Brasil lutava com os aliados nos campos da Itália. Por aqui, a guerra declarada é entre "o nós e o eles"... Naquela época, pelo menos, os idosos eram considerados e podiam sair zoando pelas praças, praias, restaurantes, parques e avenidas aproveitando o que lhes restasse da vida. Hoje estão sendo considerados como “embaixadores plenipotenciários do coronavírus”... Que seja o que Deus quiser...

Desanimado, desliguei o computador e fui para a varanda cuidar das plantas. Uma violeta olhou para mim e sorriu...

Amelius
Enviado por Amelius em 31/03/2020
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